terça-feira, 11 de março de 2008

0230) Te entrega, Saddam! (16.12.2003)




Era domingo; acordei tarde, liguei a TV na GloboNews, só para saber o resultado de Boca Juniors x Milan, que de manhã tinham decidido o campeonato mundial de clubes. A primeira imagem que vi foi de soldados americanos comemorando; em seguida apareceu um indivíduo sendo examinado por médicos, e quando vi aquela barba tive um susto: “Meu Deus do céu! George Bush invadiu Cuba, e prendeu Fidel!” Não era: era o bom e velho Saddam Hussein, alquebrado, hirsuto, com cara de quem tinha passado estes últimos meses naquele campo de concentração que os americanos montaram em Guantánamo para os guerrilheiros da Al-Qaeda.

Vendo aquela cara, entendi mais uma vez por que é que certos sujeitos preferem morrer a se entregar. O grito de Corisco, “Me entrego só na morte, de parabelo na mão!” é bonito e é heróico, mas quem tem fibra para levá-lo ao pé da letra? Não é uma questão de caráter, porque temos desde Salvador Allende até Adolf Hitler, ou seja, de um extremo a outro de uma imensa escala de valores. Tem horas que um sujeito, no momento de sua pior derrota, resolve “não dar gosto ao Cão”, ao inimigo. Prefere morrer do que ser coagido, manietado, rebocado de um lado para outro, exposto às câmaras... “Não,” pensam eles, “não vou dar esse gosto.”

Acho que tem horas que um sujeito percebe o quanto é pequeno. Depois que ficou sem os capangas, sem as raparigas, sem os puxa-sacos; depois que ficou sem os palácios de mármore, sem as estátuas, sem os painéis celebratórios espalhados pela cidade; depois que teve que literalmente se enfiar num buraco embaixo do chão, Saddam Hussein foi caindo na real. Aconteceu com ele o mesmo que aconteceu com aquele personagem de Machado de Assis, que só conseguia se ver no espelho quando vestia a farda de alferes. Sem ela, sua silhueta ficava embaçada, “uma nuvem de linhas soltas, inacabadas”... Com a farda, ele respirava aliviado: voltava a estar nítido e completo.

Pobre de Saddam. Tomaram-lhe a farda. Tomaram-lhe o exército, as riquezas, os filhos, a Guarda Republicana, o ministro que dava entrevistas profetizando vitórias arrasadoras. Depois que lhe arrancaram isso tudo, Saddam viu que não passava, ele próprio, de um capanga de alguém. Quem lhe deu tudo, acabou tirando-lhe tudo de volta. Pau-mandado dos EUA para bloquear a expansão dos aiatolás xiitas do Irã, Saddam já adivinhava que a mordomia não ia durar muito tempo. Foi logo matando quem tinha de matar, gastando o que podia gastar, vivendo sua fantasiazinha de Stálin de quintal. Hoje, a TV mostrou quem ele é de verdade, e tive pena. Como também terei pena de George W. Bush (ou de quem o suceder) quando lhes fôr tirada também a farda. Quando não tiverem mais o dólar, o FMI, os exércitos high-tech, a borduna econômica e militar com que intimidam e encurralam o mundo. Nesse dia, Bush & Cia. ficarão sabendo que valem tanto quanto um elias-maluco qualquer que se vendeu ao Diabo e pensou que era o próprio.

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