terça-feira, 11 de março de 2008

0227) A elipse da mente (12.12.2003)





Perdão, leitores. Num artigo recente (“O centro do mundo”, 9 de dezembro) cometi um erro elementar, pelo qual venho pedir desculpas publicamente. Escrevi: “Para as pessoas como eu, o mundo não é um círculo, que só tem um centro: é uma parábola, que tem dois centros, ou dois focos: o olho que vê e o objeto que é visto, ou a mente que pensa e o objeto que é pensado.” Meu erro foi confundir uma elipse com uma parábola. Uma voz maquiavélica me sussurrou ao ouvido: “Esquece, rapaz. Nem 10 por cento dos teus leitores sabe a diferença. Esse pessoal entende de Geometria o que tu entende de motor-de-automóvel. Se tu anunciar um erro, perde a credibilidade”. Mas logo uma outra voz, mais maquiavélica ainda, me sussurrou no ouvido oposto: “Exatamente! Já pensou, você vir a público e assumir um erro que ninguém notou? Eles vão pensar: Olha que rapaz íntegro! Ninguém tinha percebido, mas ele veio a público, retratou-se...”

Bom; o debate continua, mas tenho que ir em frente. Não é parábola, é elipse. Elipse é aquele troço parecido com um círculo, só que mais baixinho e mais largo. E com dois focos, em vez de um único centro. Uma elipse me lembra uma célula prestes a se dividir em duas (não vou arriscar o nome disso, senão erro de novo). A célula cresce, seu núcleo se torna mais denso, e aí começa um processo de divisão no qual a célula, que tinha a forma aproximado de um círculo com um centro, ganha a forma aproximada de uma elipse com dois focos, que vão cada vez se afastando mais um do outro, até que – pop! – as duas se separam.

Mesmo assim acontece com a mente de certas pessoas. Eu diria que uma das características do Homem Moderno, o que quer que seja isto, é o talento para a despersonalização, para o deslocamento de um centro para outro, do Eu para o Outro. Pensar como se eu não fosse eu. Agir como se eu fosse Fulano. Me botar no lugar de Sicrano e tentar imaginar quem é ele, o que pensa, por que age assim. As pessoas comuns dos séculos anteriores não tinham essa capacidade. Hoje em dia, qualquer garoto, qualquer transeunte é capaz dessa façanha.

Edgar Allan Poe fundou a literatura detetivesca baseando-se na capacidade do detetive em colocar-se no lugar do criminoso e deduzir, de suas ações passadas, seus pensamentos presentes e suas ações futuras. Toda a moderna Teoria dos Jogos baseia-se nesse princípio de deslocamento e re-identificação. E os jogos propriamente ditos, desde o xadrez até os jogos de baralho, também exigem do jogador que ele possa “sair do seu centro”, deixar provisoriamente de ser ele mesmo e entrar (metaforicamente) na mente do adversário. O Eu moderno é o “Eu Dividido” do psicanalista R. D. Laing, é o “Eu Profundo e outros Eus” de Fernando Pessoa, é o “Eu sou ele, como você é ele, como você é eu, e nós somos todos juntos” de John Lennon, é o “Eu e Eu” de Bob Dylan, o “Eu é um Outro” de Rimbaud. O que para uns é loucura, para outros é o jeito futuro de ser.

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