terça-feira, 11 de março de 2008

0202) O ponto cego do texto (13.11.2003)




Qualquer arte usa a elipse, a omissão de elementos, como elemento expressivo. No cinema, só vemos o que a câmara nos mostra. O diretor pode preparar uma cena de grande impacto dramático onde, por exemplo, a câmara move-se acompanhando um personagem ao longo de uma rua. Ele sobe a escada que leva à porta de uma casa, entra, sobe por uma escada que leva ao andar de cima. A câmara o segue ao longo de todo este percurso.

O personagem abre a porta de um quarto, entra; mas então a câmara se detém no corredor, mostrando apenas a porta entreaberta. Passa-se meio minuto (o que, numa cena sem ação, num filme, é uma eternidade). Vemos então o personagem sair novamente pela porta, descer as escadas, sair para a rua. O que aconteceu no quarto? O diretor preferiu não mostrar.

Na literatura, contudo, temos o poder de criar esse “ponto cego” de várias outras maneiras.

É famoso o caso do romance policial de Agatha Christie em que o assassino é o próprio personagem que narra a história na primeira pessoa. (Mesmo famoso, não direi que livro é, para não estragar o prazer de quem ainda não o conhece.) Vemos tudo que acontece através dos olhos desse narrador. No final, quando ele admite que cometeu o crime, voltamos para reler o capítulo em questão. E ele diz, mais ou menos: “Fulano (a vítima) sentou na poltrona e começou a ler. Dei-lhe boa noite, arrumei a escrivaninha, fiz tudo que era necessário. Depois saí e fechei a porta atrás de mim.”

Tínhamos lido isto sem desconfiar de nada, e só agora, na releitura, percebemos que esse “fiz tudo que era necessário” significa “enfiei o punhal em Fulano, conforme tinha planejado”. O crime ocorreu diante de nós, mas no momento exato a autora colocou a mão à frente dos nossos olhos.

Quem explora com imensa habilidade e variedade essa técnica do ponto cego é Julio Cortázar.

Um de seus contos mais brilhantes, “Depois do almoço” (em Final de Jogo), é narrado por um garoto a quem os pais obrigam a levar alguém para passear. Quem? Não sabemos; o narrador o chama apenas de “ele”, mas é alguém que dá trabalho, que é preciso vigiar o tempo inteiro, que chama a atenção por onde passa, e que a qualquer momento pode aprontar uma cena: “quando me dei conta, já estava completamente ensopado, e tinha folhas secas por toda parte.” 

Será um velho esclerosado? Um adulto retardado? Uma criança-problema? Um bicho de estimação? Não sabemos nunca, ouvimos apenas a narração angustiada do garoto:

“Nunca me tinham pedido que o levasse ao centro, era injusto que pedissem, porque sabiam muito bem que na única vez que me haviam obrigado a passear com ele pela alameda havia acontecido aquela coisa horrível com o gato dos Álvarez.” 

O que? Nunca saberemos. Sentimos apenas a angústia do garoto, que tem vergonha de tomar conta de outra pessoa; e para um menino essa vergonha é muito, muitíssimo mais real do que essa pessoa.


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