Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 9 de março de 2008
0138) O depressivo (30.8.2003)
Uma vez eu conversava sobre Literatura com alguns amigos quando alguém foi na estante, pegou um livro de Dostoiévski, e comentou que certo conto foi escrito numa fase em que o autor estava muito deprimido, arrasado por problemas financeiros e de saúde, pensando em suicidar-se, etc.
Eu folheei o livro (faz muitos anos, não lembro mais que livro era), li alguns trechos, e tentei imaginar que tipo de emoções depressivas resultariam numa prosa tão bem escrita quanto aquela.
Pensei, com a irreverência sacrílega que me é tão espontânea: “Oxente, eu bem queria ter uma depressão e escrever desse jeito! Era lucro!”
Anos depois eu estava editando um livro e me deram para examinar uma “boneca”, uma prova do livro em seus primeiros estágios. A diagramação proposta e as ilustrações estavam todas lá, mas não o texto. Nos lugares que iriam ser ocupados pelo texto, havia apenas blocos inteiros de letras sem sentido, guardando o lugar.
Eram apenas duas letras, repetidas aleatoriamente: nnoonn oooonn oooonnn nooooonnn ooo nnnooo nnonono ooono nonono nnnoo ooonono oonnoonnoo ooooonnn nono onon nonooo nnnooo nnonono oo... Acho que é uma convenção gráfica usar estas duas letras, e não jfjfjf, kwkwkw ou outras.
Naquela madrugada insone, olhando esse texto-fantasma, vi ali pela primeira vez um hipotético texto literário produzido por um escritor com depressão. Estava ali a mais aterrorizante força da Natureza: a Entropia, a perda de energia, a perda de significado, a perda da diferenciação.
A Entropia é a progressão rumo ao que os cosmólogos chamam “a morte térmica do Universo”: o dia em que todas as estrelas terão esgotado seu combustível e o Universo inteiro será uma extensão indiferenciada, reta e uniforme como a linha horizontal de um eletrocardiograma numa UTI, quando o coração pára de bater, pára de fazer a linha luminosa no mostrador dar aqueles pulinhos ritmados, e avança numa direção só: piiiii...
Texto produzido pela depressão, o de Dostoiévski? Besteira. Aquilo ali é a cura da depressão. Ler pessimistas como Kafka, Cioran, Albino Forjaz de Sampaio, cura a depressão de qualquer pessoa.
O que deveria nos aterrorizar é a ausência de idéias, de emoções, de palavras, de sentido.
Quem assistiu “O Iluminado” de Kubrick (ou leu o livro de Stephen King) deve lembrar a cena mais apavorante do filme. Jack Torrance, o protagonista, está endoidecendo aos poucos, mas todo dia senta na máquina e passa horas escrevendo um romance. A certa altura, a mulher dele pega aquelas centenas de folhas escritas, e vê que em todas elas há apenas uma frase, repetida obsessivamente: “All work and no play makes Jack a dull boy” (“Só trabalhar, sem se divertir, faz de Jack um menino deprimido”).
Esta única frase, de cima a baixo, ao longo de centenas de páginas, depois de semanas de trabalho. Aquele sujeito, sim, está a um passo do zero absoluto, está a um passo de ser capaz de escrever apenas: nononono nnnoonnoo ooooonno ooooooo...
Bacana o texto! Como sempre.
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