Existem umas 200 biografias de Machado de Assis, nenhuma de Guimarães Rosa. Por que será? Temos fascículos ou livros didáticos com resumos da vida do autor, e só. Precisaríamos de uma biografia pesquisada, trabalho profissional, como o de Fernando Morais sobre Assis Chateaubriand, os de Ruy Castro sobre Nelson Rodrigues e Garrincha, ou (para ficarmos num exemplo doméstico) o de Fernando Moura e Antonio Vicente sobre Jackson do Pandeiro.
Não que eu tenha ilusões de que biografias sirvam para revelar “quem foi, de fato, Fulano de Tal”. Toda vida humana, até a de Zezim das Couves, é irredutível a palavras. Sempre que leio uma biografia, fico pensando nos acessos de desespero e nas crises de depressão que o biografado teria, se lhe dessem a chance de voltar à vida e ler o que escreveram sobre ele. “Não foi nada disso!” seria com certeza seu desabafo mais frequente. Mas, paciência. Fazer o quê? Morreu, lascou-se. A vida continua, e a crítica literária também. E há um setor da crítica, que tem lá sua importância, onde se investiga a cronologia de uma vida em paralelo à cronologia da gestação e criação da obra.
A vida de Guimarães Rosa permanece em aberto, esperando quem sabe a vinda de um “brazilianist” que tenha o pique do destemido John Baxter, o cara que já biografou Luís Buñuel, Federico Fellini, Stanley Kubrick, Woody Allen e Steven Spielberg. Ou de Jeffrey Meyers, que já contou as vidas de Scott Fitzgerald, Edgar Allan Poe, Hemingway, D. H. Lawrence e Joseph Conrad. E o momento seria agora, em que muitos dos seus contemporâneos ainda estão vivos, além de familiares, como suas filhas Vilma e Agnes.
Tolkien, o autor de “O Senhor dos Anéis”, afirmou certa vez: “Uma das minhas opiniões mais sólidas é a de que o estudo da biografia de um autor é uma maneira totalmente inútil e falsa de abordar sua obra.” E ainda assim, a biografia dele escrita por Humphrey Carpenter é uma aula de como mostrar a relação entre vida e obra, sem as interpretações gratuitas ou as generalizações apressadas em que biógrafos mais ingênuos (ou menos escrupulosos) incorrem com facilidade. A biografia literária que Emir Rodriguez Monegal fêz sobre Jorge Luís Borges é, também, um primor de reconstituição do ambiente cultural e literário que formou o escritor. O biografado entra nela quase como um coadjuvante. O personagem principal é a Literatura, através dos escritos de Borges e do mundo literário de que ele fêz parte.
Guimarães Rosa foi médico rural e do Exército, trabalhou no antigo Serviço de Proteção ao Índio, foi diplomata na Alemanha nazista e na Colômbia, ajudou a demarcar as fronteiras do Brasil, flertou com o Ocultismo, estudou dezenas de línguas, ocupou numerosos cargos oficiais, teve uma vida bem documentada, correspondia-se com Deus e o mundo (no sentido real e no metafórico). Tudo isso se filtrou para os seus escritos, mas a história dessa complexa alquimia ainda está esperando para ser contada.
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