sábado, 8 de março de 2008

0097) O jornalista (13.7.2003)




Os literatos esnobam os jornalistas. É natural. Um sujeito que se dá o luxo de só escrever quando está emocionado tem o direito de olhar com comiseração um pobre coitado que tem de encher uma página todo dia, inspirado ou não. Pescar no fim de semana todo mundo gosta; é um passatempo, que se pratica (explicam os fim-de-semanistas) “para desopilar”. Mas, e o camarada que se não pescar não janta? 

O jornalista é um desses que têm de sair todo dia para pescar, chova ou faça sol, e não adianta desculpa se voltarem para casa de mãos vazias. Ninguém nunca viu um jornal sair com meia página em branco, tendo ao lado a explicação de que “as notícias hoje foram poucas”. Isso não existe. 

Jornalista sai todo dia pra pescar, e oferecer para o jantar o que trouxer, mesmo que seja uma bota velha ou uma câmara-de-ar naufragada.

Em seu conto de ficção científica “Utopia de um homem que está cansado” (no Livro de Areia), Jorge Luís Borges faz seu protagonista visitar o futuro remoto, e descrever assim a nossa época: 

“Em meu curioso ontem, prevalecia a superstição de que entre cada tarde e cada manhã ocorrem fatos que é uma vergonha ignorar. Tudo isto se lia para o esquecimento, porque em poucas horas o apagariam outras trivialidades.” 

Imagino que muitas crianças, ao começar a entender o que é um jornal, terão se maravilhado com o fato de que todos os dias acontecem coisas na quantidade certa para encher aquele mesmo número de páginas. Uma prova de que a vida tem sentido.

O jornalismo como explicação do mundo pertence a uma época em que, diz Borges, “as pessoas eram ingênuas: acreditavam que uma mercadoria era boa porque assim o afirmava e repetia seu próprio fabricante.” 

Luís Buñuel, alguns meses mais novo que Borges, compartilhava deste sentimento: 

“A leitura dum jornal é a coisa mais angustiante do mundo. Se eu fosse um ditador, limitaria a imprensa a um único jornal diário e a uma única revista, sendo os dois rigorosamente censurados. A informação-espetáculo é uma vergonha.” 

Buñuel e Borges são “gentlemen” idealistas, que recuam ao perceber o teor levemente prostitucional de toda atividade remunerada.

Não é assim, contudo, que eu vejo um jornal, ou melhor, sei que é assim, mas tem outro lado. 

Eu vejo um jornal como se ele fosse feito por um cara que passa a noite acordado, à luz fluorescente de seu gabinete, cercado de livros, conectado com o mundo inteiro, todos os países, todas as cidades. Ele sabe tudo que está acontecendo, recebe e classifica todas as informações, trabalhando sem parar. Depois desce para o porão da casa, bota as rotativas para funcionar. Quando o dia amanhece, os passarinhos acordam e o sol clareia a rua, ele vem, trôpego de insônia, abre timidamente a porta da frente, olha a rua deserta... E deposita no batente aquele exemplar único e insubstituível, fecha a porta, e vai dormir, na esperança de que alguém se interesse pelas coisas que ele, bem ou mal, conseguiu pescar.





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