Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sábado, 8 de março de 2008
0096) O boêmio (12.7.2003)
("Night Shadows", Edward Hopper, 1921)
“Hoje que a noite está calma, e a minha alma esperava por ti...” Há noites em que o vento sopra mais morno, uma vibração de luzes perpassa pela cidade, e o ruído discordante dos motores e das buzinas parece regido por um maestro de bom coração. É o sinal para que o boêmio saia à rua, penetre em seu mundo além da jurisdição dos relógios e da moeda corrente no país. O boêmio: não o alcoólatra, não o glutão, não o meramente raparigueiro. Não o sujeito descontrolado que torra o salário-mínimo no botequim enquanto a família passa fome. Quem faz isto é um desajustado. O verdadeiro boêmio é um sujeito em harmonia com os dez mandamentos e a Constituição, e em paz consigo mesmo.
Boemia é uma arte de instaurar num trecho do espaço e do tempo um espaço fictício, que obedece a outras leis. O boêmio cumpre suas obrigações, atende a comunidade, respeita a lei sempre que pode, e considera-se um cara de bons costumes. Põe no seu mundo o que Deus pôs no seu Paraíso: o que achava bom. Bebida, jogo, música, mulheres, pândega, filosofia, romantismo, estripulias.. cada boêmio planeja e executa seu céu particular.
Ao longo dessa noite, só coisas boas deverão acontecer. Como o conceito de coisas boas jamais foi unânime, atribuem-se a todos os boêmios alguns desmantelos causados por eventuais boêmios valentões, ou insultuosos, ou maus pagadores. É uma injustiça, porque o verdadeiro espírito da boemia é de paz-e-amor, de convivência pacífica e de generosa honestidade. O boêmio quer ver todo mundo tranquilo e bem-humorado, para que ele possa continuar a fazer o que gosta: tocar violão, namorar, contar filme, recitar versos, receitar o Mundo, celebrar o passado, poetizar o presente, ficcionalizar o futuro.
Canções que louvam a boemia são incontáveis, desde os boleros de Adelino Moreira para Nelson Gonçalves até recriações mais modernizadas como “Olê, Olá” de Chico Buarque ou o “Mr. Tambourine Man” de Bob Dylan. Há uma percepção mágica de que de noite as amarras do mundo estão mais frouxas, o zumbido ensurdecedor de tantas mentes alheias se reduz a um sussurro quase inaudível – e o boêmio caminha leve, enxerga longe e pensa largo. Ele quer que aquela noite não acabe nunca, e é pelo poder encantatório da palavra e das libações que consegue retardar a marcha do Sol.
Muitos boêmios acabam com a própria saúde, mas não é devido à boemia, e sim ao fato de que bebem mal, fumam mal, alimentam-se mal. Não fosse assim, descobririam que uma noite inteira de boemia conta apenas uma hora em termos de envelhecimento. Poderiam tornar-se, com sorte, Matusaléns em plena ativa. A boemia decerto envolve aventura (quem não se deleita com o risco de beber a noite inteira num lugar barra-pesada?), mas os riscos lhe pertencem como pertence a pimenta à moqueca, ou o soar de címbalos à sinfonia. Seu roteiro é de paz, e a filosofia que espalha é como a do Rubayat de Omar Khayam: a de que o Instante é mais real do que a Eternidade.
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