Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sexta-feira, 7 de março de 2008
0046) O mel e a farinha (15.5.2003)
(John Ford, Rastros de ódio)
Os críticos de cinema têm sido os grandes defensores do cinema como Arte. Os produtores têm defendido o cinema como Entretenimento.
Sempre achei esta questão mal colocada, porque há muitos filmes imensamente divertidos como passatempo e que são tidos como obras-primas da Arte, o que mostra que as duas coisas não se excluem mutuamente.
Basta pensar na maioria dos filmes de Charles Chaplin e de John Ford. Nem todo mundo os considera Arte de primeira (sei de muita gente boa que torce o nariz para ambos) e nem todo mundo se diverte igualmente com eles, mas me parecem exemplos aceitáveis.
Os filmes de Chaplin e de Ford foram feitos com propósitos comerciais. Seu objetivo nunca foi ganhar Palma de Ouro em algum festival, e sim arrecadar boas bilheterias. O que acontece é que ambos os cineastas se dedicavam com rara intensidade ao que faziam, e em vez de simplesmente aplicarem as fórmulas aprendidas criavam novas fórmulas o tempo todo.
Os filmes que faziam, ano após ano, interferiram de maneira consistente e prolongada na linguagem usada pelos diretores, e no modo como críticos e espectadores liam aqueles filmes. E isto não apenas nos gêneros a que os dois se dedicaram (a comédia e o faroeste, respectivamente), mas no próprio meio de expressão que escolheram, o cinema.
Chaplin, principalmente, se beneficiou do fato de estar trabalhando naquela Era de Ouro de uma forma de arte, que ocorre quando existe uma linguagem básica compartilhada por artistas e público, mas esta linguagem ainda não está plenamente desenvolvida, está “em aberto” em todas as direções.
Isto faz com que os artistas possam propor centenas de pequenas inovações que o público é capaz de assimilar, porque tudo ainda é muito básico, tudo ainda está muito perto dos elementos originais, tudo pode ser entendido e apreciado sem muito esforço. Não há uma distância excessiva: artistas e público estão aprendendo juntos uma nova forma de expressão.
“Esforço” parece ser uma palavra-chave. Quando o público tem que fazer um esforço grande demais para fruir a obra, fica confundido, aquilo deixa de representar entretenimento para ele.
E, do mesmo modo, quando não lhe é exigido esforço algum, quando tudo é repetição, o entretenimento também cai a zero.
Em seu livro Popular fiction 100 years ago, de 1957, Margaret Dalziel chama de literatura popular “os livros e revistas que são lidos puramente por prazer por pessoas para as quais este prazer é incompatível com o dispêndio de esforço intelectual ou emocional.”
Existe uma tensão entre um conjunto de linguagens e temas ainda não totalmente assimilados, que exigem um esforço maior, e outro mais previsível, que exige menor esforço. Arte e Entretenimento não são incompatíveis, em absoluto. É só uma questão de dosagem, como comer mel-de-rapadura com farinha. Ficou muito seco, bota mais mel. Ficou muito molhado, bota mais farinha.
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