Era um domingo à tarde: Araraquara estava em festa com a presença do Santos de Pelé, que vinha enfrentar a Ferroviária num jogo pelo Campeonato Paulista. Às vésperas de completar 20 anos, Pelé, campeão mundial aos 17, já era aclamado por grande parte da imprensa como o maior jogador do mundo.
As façanhas que vinha acumulando justificavam esse entusiasmo, embora ele ainda viesse a conquistar mais outros quatro títulos mundiais (dois pelo Santos, e mais dois pela Seleção), e estivesse ainda a dez anos de sua melhor participação em Copas do Mundo.
Foi no trajeto entre o hotel e o estádio que Pelé, cercado pela costumeira caravana de fãs, atravessou a praça e percebeu outra romaria que se aproximava em sentido contrário. Em vez dos barulhentos torcedores, esse outro grupo era composto por homens de terno, e mulheres usando os comportados vestidos da época. Uns eram idosos, outros bem mais jovens, e caminhavam sem perder de vista e de ouvido o casal que avançava no centro do grupo: um homenzinho de óculos, com a pálpebra esquerda denunciando o olho prejudicado, e a mulher mais alta do que ele, de pele muito branca e sardenta, traços delicados, olhos concentradamente sérios.
O casal Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir estava em viagem pelo Brasil. Ciceroneados por Jorge Amado, os dois iam naquele instante rumo à Faculdade de Filosofia de Araraquara, onde Sartre proferiria uma palestra sobre sua recém-lançada “Crítica da Razão Dialética”.
O cruzamento fugaz dos dois grupos foi testemunhado por Loyola Brandão, pelo diretor José Celso Martinez Corrêa, pelas tias do dramaturgo Mauro Rasi (recentemente falecido), e por dois estudantes que seguiam a comitiva sartreana, chamados Fernando Henrique e Ruth.
Fernando Henrique, que naquele instante só tinha olhos para o pai do Existencialismo, não teve tempo de imaginar que, 34 anos depois, seria eleito Presidente da República derrotando o maior líder das esquerdas operárias brasileiras, e que um dos ministros do seu governo seria aquele jovem jogador negro, que dava autógrafos sem perder o sorriso.
É assim – não é mesmo? – a vida das pessoas. Na hora, tudo é casual, tudo é normal, tudo é comum. Visto em retrospecto, depois que sabemos como aquilo terminou, tudo ganha significado, as associações e comparações podem ser feitas com clareza, tudo parece “ironia do destino”, ou premonição.
Depois que sabemos em quem aquelas pessoas se tornaram, o simples fato de que elas se cruzaram um dia numa praça é algo mágico. Mágico como a imagem surrealista do encontro entre um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecação.
Como diriam os Existencialistas, só tem sentido porque aconteceu.
Revisitar o Mundo Fantasmo também dá imenso prazer.
ResponderExcluir