sexta-feira, 7 de março de 2008

0040) Em cima do palco, no pé da parede (8.5.2003)



(Os irmãos Batista, com Pinto do Monteiro: Otacílio, Lourival, Pinto e Dimas).

A Cantoria de Viola é uma arte da palavra, é uma forma de literatura oral, mas certas coisas nela só podem ser entendidas por quem as aborda com cabeça de músico. 

 Não me refiro às toadas usadas pelos repentistas, nem ao ponteado que executam nas violas. É que pelo simples fato de ser uma arte do repente, a Cantoria se parece muito com os improvisos que os músicos estão acostumados a realizar quando tocam juntos. 

Saber improvisar em conjunto requer uma ligação telepática ou espiritual, uma espécie de adivinhação instantânea do que o outro vai fazer. “Rola um Kardec,” como diz Lenine.

Um músico de palco (que não é o mesmo que um músico de estúdio) pode entender uma Cantoria melhor do que um literato. Músico de palco está acostumado a tocar e ficar de olho nos companheiros, para captar qualquer sugestão harmônica ou melódica, trazê-la para seu instrumento, desenvolvê-la. 

Um músico às vezes sobe num palco de maneira preguiçosa, apenas para executar burocraticamente as convenções e o roteiro estabelecidos nos ensaios. 

Outras vezes, contudo, ele sobe ali para criar, para inventar, para se divertir. E muitas dessas criações se dão em frações de segundo, são decisões repentinas tomadas por um dos músicos às quais os outros imediatamente aderem, passam todos a fazer o que o primeiro fêz.

Tanto numa Cantoria quanto num improviso musical, é como se toda a bagagem e toda a experiência do artista fossem mobilizadas, ficassem em estado de alerta máximo, prontas para colocar à disposição dele idéias quase esquecidas, exercícios técnicos praticados e aposentados há muito tempo, pedaços incompletos de criações próprias e alheias.

O mesmo se dá com o repentista. O verso dito pelo colega desperta em sua memória uma associação de idéias, ou um verso que ele mesmo já fêz certa noite há dez ou quinze anos, mas que pode ser usado agora pela segunda vez. 

Em cima do palco, ou no pé da parede, ninguém pode pedir para parar e pensar um pouco. A música ou a cantoria estão fluindo, e é preciso fazer, tocar, dizer, inventar algo. 

Essa pressão pela invenção constante consegue extrair, de um artista mais talentoso, mais experiente ou mais preparado, repentes de imaginação que não lhe ocorreriam se estivesse sozinho, descontraído, tocando no terraço de casa.

Ver uma noitada de jazz instrumental e uma noitada de Cantoria de Viola são duas experiências imensamente distantes, mas elas têm em comum essa atividade que talvez possamos considerar uma forma de Arte acima de todas as outras: o Improviso, o Repente. 

Criar uma pequena obra de arte do Nada (ou aparentemente do Nada) numa fração de segundo. 

Um literato fica muitas vezes criticando a rima repetida ou o catabí métrico do cantador; mas um músico vê, para além desses detalhes, a faísca da intuição que o fêz pegar o “sentido” proposto pelo companheiro e completá-lo como se os dois versos tivessem sido feitos por um só espírito. Rola um Kardec.




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