sexta-feira, 7 de março de 2008

0020) A Besta Loura Calibã (15.4.2003)



No folheto 79 do Romance da Pedra do Reino Ariano Suassuna encena um diálogo entre Adalberto Coura, um jovem intelectual de esquerda, entusiasmado, idealista, e Arésio Garcia-Barreto, um revoltado cínico, individualista, cruel. Os dois falam sobre uma Revolução Brasileira que nos libertasse da exploração econômica e cultural estrangeira. A existência desta exploração, e a necessidade de acabar com ela, é o único ponto em que os dois concordam; discordam quanto ao resto.

Arésio acredita que os latino-americanos são o povo indicado para se opor “à sacrílega, subalterna e desumana Cruzada industrial dos Americanos, herdeiros da brutalidade fanática e puritana dos Nórdicos, do egoísmo e do apego ao dinheiro dos anglo-saxões.” Ele acredita, no entanto, que isso só pode se dar através da luta armada, e não tem ilusões altruístas. Para ele, tudo se resume a uma luta pelo Poder, e se é de o Poder ir parar nas mãos dos gringos, melhor que pare nas nossas.

Arésio diz: “Esses Povos de comerciantes, os mais tristes do mundo, nascidos e criados entre o frio, o escuro e a severa infelicidade dos ideais puritanos, querem impingir suas receitas de vida a nós, Povos morenos, criados ao Sol!” A disparidade entre a visão-do-mundo dos brasileiros e a dos puritanos da América do Norte é um tema recorrente na obra de Suassuna, e é curioso que na atual Guerra do Iraque este tema tenha ressurgido com tanta força em nossa imprensa.

Adalberto chama os povos anglo-saxões, a civilização dos puritanos e mercadores, de “a Besta Loura Calibã”. E isto me recorda um ensaio de G. K. Chesterton, o escritor católico a quem Bernard Shaw chamou “o mais francês dos britânicos”. Ao comentar as raízes puritanas do pensamento do próprio Shaw, de quem era amigo, Chesterton definia o Puritano como aquele indivíduo que se propõe a considerar Deus ou o Bem com a mais feroz concentração do intelecto. O Puritano se recusa a permitir qualquer interferência entre sua mente e seu Deus – interferência até mesmo de si próprio, sob a forma de qualquer atitude que dependa do mundo material.

Para Chesterton, o Puritano prefere adorar a Deus num estábulo do que numa Catedral, pela simples razão de que uma Catedral é bela. Para ele, deve-se louvar a Deus apenas com a mente: é um erro louvá-lo com emoções, com atitudes físicas (como o canto e a dança), ou com o nosso instinto de beleza. Daí advém a tragédia dos Puritanos, que tanta influência têm na sociedade norte-americana, e que agora retornam ao Poder, na administração Bush. Seu mundo é um mundo implacável onde o Bem é um conceito abstrato que tem de ser imposto ao mundo concreto, quer ele queira, quer não.

A Besta Loura Calibã vê a si própria como o agente do Bem. Seu propósito é trazer ao mundo o reino do Bem, do que é Certo, do que é Justo. O Mal é tudo que se opõe a isto, e o Mal precisa ser varrido da Terra a ferro e fogo. O Puritano é o tipo do médico capaz de tratar uma virose com cirurgia.


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