sábado, 9 de novembro de 2024

5121) O Jardim do Xadrez (9.11.2024)

 


Acabei nestes dias a leitura de um romance de Fantasia Urbana diferente de tudo que li nesse gênero, talvez por ser de um autor que não pertence ao universo editorial “de gênero” nos EUA – aqueles autores que frequentam convenções, correspondem-se com fãs, concorrem a prêmios, etc. 

 

Brooks Hansen, o autor de The Chess Garden (1995), é um autor mais próximo do mercado editorial mainstream do que da fantasia e ficção científica. The Chess Garden  foi considerado um dos “Livros Notáveis” do ano pelo New York Times,  tal como outros três livros seus (Boone, 1990; Perlman’s Ordeal, 1999; The Monsters of St. Helena, 2003). 

 

É uma história que transcorre em dois planos – o mundo real, onde tudo acontece como num romance qualquer, e um plano de Fantasia onde o protagonista tem acesso (e nós com ele) a um mundo radicalmente diferente do nosso, e acompanhamos suas aventuras nesse mundo bizarro. 

 

O Dr. Gus Uyterhoeven é um médico holandês do século 19, cuja vida científica é descrita de maneira envolvente: nascido em 1824, ele tem uma crise intelectual com a morte do pai, interessa-se por biologia, filosofia, homeopatia, e em certo momento adquire dois “vícios” não muito graves: o xadrez e o ópio. Apaixona-se pela filha de um barqueiro nos canais dos Países Baixos, e lhe faz a corte até casarem e terem um filho. Perdem esse filho, e moram em várias capitais da Europa até se transferirem para os EUA – mais precisamente para Dayton (Ohio). 

 

Ali, instalam-se numa casa espaçosa, com um enorme jardim, e o Dr. Uyterhoeven resolve transformar esse jardim no Clube de Xadrez aberto a todas as pessoas da cidade. Como ele coleciona jogos de xadrez, jovens e adultos de Dayton passam a frequentar o Jardim e usar as dezenas de tabuleiros que ele possui. O Doutor e sua esposa Sonja tornam-se pessoas queridas e respeitadas por todos. 

 

Toda esta parte da narrativa é contada como uma narrativa realista do século 19, sem nada de fantástico, mas com um notável senso de ambiente cultural e filosófico, ao descrever as polêmicas científicas em que o Doutor se envolve; e com muita finura psicológica retratando seu relacionamento com esposa, amigos, colegas, família. 

 

Por volta de 1901, o Dr. Uyterhoeven, já com mais de 70 anos, resolve surpreendentemente viajar para a África do Sul, onde os ingleses estão em guerra com os “bôeres” locais (colonos descendentes dos holandeses), porque acha que pode ser útil, por ser holandês e médico. Pega um navio e ruma para lá. 



Começa então, após essa viagem, a parte fantástica do romance. O Doutor começa a enviar para D. Sonja uma série de cartas, nas quais revela que, na verdade, empreendeu esta viagem por ter encontrado entre seus documentos, de modo misterioso, o mapa de uma região fantástica chamada Os Antípodas, e decidiu-se a descobri-la e desbravá-la. 

 

Nesse continente imaginário ocorrem suas aventuras daí em diante, narradas em doze cartas que D. Sonja lê em voz alta, uma a uma, à medida que chegam, para seus vizinhos de Dayton e suas crianças, em sessões coletivas no Jardim do Xadrez, reunindo dezenas de pessoas, todas acompanhando fascinadas as aventuras surreais do Doutor, um homem sobre cujo caráter, inteligência e credibilidade não paira nenhuma dúvida. 

 

Logo nas primeiras cartas do Doutor, descobrimos que esse continente fantástico é habitado basicamente por peças de jogo: peças de xadrez, de damas, de dominó, de jogo de dados, de gamão, etc.  Essas peças, contudo, são também pessoas: vivem, pensam, falam, têm sentimentos.  Podem ser comparadas às cartas de baralho de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, uma influência marcante neste livro. 

 

Perambulando por esse mundo, o Dr. Uyterhoeven faz amigos, desafetos, corre perigos, mete-se na vida alheia, encontra a todo instante situações e conflitos inexplicáveis, e se aprofunda cada vez mais na vida daquelas criaturas, que em geral o recebem bem e o ajudam como podem. 



O livro de Brooks Hansen não é um desses romances que trazem revelações surpreendentes ou desfechos trovejantes em suas últimas páginas. É o livro horizontal, sem saltos acrobáticos de dramaturgia. A história de um homem aparentemente comum, mas com um universo mental fora do comum, o que não o impede de ser querido e respeitado por todos. Sua história é uma história de revelações e descobertas íntimas, que trazem uma luminosidade gradual à história contada. 

 

Um dos aspectos mais eficazes do romance é a estrutura de seus capítulos. O resumo que fiz acima está por ordem cronológica, “de A a Z”, como se diz. O livro se abre com um excelente capítulo inicial com a morte da Sra. Uyterhoeven, uma inundação na cidade de Dayton, e a releitura das primeiras cartas, que a família guardava cuidadosamente. Daí em diante, os capítulo vão se alternando: a biografia do Doutor, e as cartas dos Antípodas, duas séries paralelas de revelações que mais de uma vez se explicam ou se enriquecem mutuamente. 

 

Essa alternância entre a narração do presente e a narração do passado do personagem é um recurso interessante, que lembro de ter encontrado em Os Despossuídos (Ursula Le Guin, 1974), cujos capítulos se alternam desta forma. Um efeito curioso disto é que estamos vendo a história do meio para o fim (a narração do presente) e ao mesmo tempo do começo para o meio (a narração do passado), de modo que há uma forte compulsão, fechado o livro, a ler tudo de novo. 

 

Que cartas são essas que o Doutor manda para casa? “Na vida real” ele está presenciando a Guerra dos Bôeres, na África do Sul. Que Antípodas são esses onde ele foi parar? 

 

A fascinação pelo xadrez explica uma parte dessa fantasia do doutor. Outra parte pode ser explicada pela sua descoberta dos escritos de Swedenborg. Como o Doutor, o sueco Emanuel Swedenborg (1688-1772) foi ao mesmo tempo um cientista (foi autor de numerosas invenções tecnológicas) e um visionário, que afirmava visitar com frequência o mundo dos espíritos, anjos e demônios. 

 

Brooks Hansen parece sugerir que o Dr. Uyterhoeven partiu para a guerra com o intuito de adentrar pouco a pouco o reino da morte, conforme o via o místico sueco. 

 

Para Swedenborg (valho-me aqui do artigo de Jorge Luís Borges em Prólogos con un Prólogo de Prólogos, Buenos Aires, Torres Aguero, 1975), quando um indivíduo morre pensa que ainda está vivo, e é transportado para um mundo semelhante a este de cá – um mundo que hospeda em alguns trechos o Paraíso e em outros o Inferno. Julgando que continua aqui na Terra, o morto recente (e desavisado) faz suas escolhas.  

 

Diz Borges:

 

Se o morto é mau, agradam-lhe o aspecto e o trato dos demônios, e não tarda a juntar-se a eles; se é um justo, escolhe os anjos. Para o bem-aventurado, o orbe diabólico é uma região de pântanos, de cavernas, de choças incendiadas, de ruínas, de lupanares e tabernas. Os réprobos não têm rosto, ou têm rostos mutilados e atrozes, porém acreditam-se formosos. O exercício do poder e do ódio recíproco é sua felicidade. Vivem entregues à política, no sentido mais sul-americano da palavra. 

(trad. BT)

 

O Além é uma expansão do mundo que coligimos para nós mesmos ao longo de nossa vida; e isto parece ser a mesma percepção que inspirou a Gilberto Gil os versos: 

 

Basta ver-te em teu mundo interno
pra sacar teu inferno: teu inferno é aqui. 

(“Pessoa Nefasta”) 

 

Se isto se aplica ao romance de Brooks Hansen, os Antípodas em que o Dr. Uyterhoeven mergulha (enquanto seu corpo físico atravessa a Guerra dos Bôeres) são o seu Paraíso particular. Um mundo onde a vida está sempre sujeita ao mistério, ao absurdo, ao inexplicável; um jogo cujas regras passamos a vida tentando descobrir. 

 

Ironizando seus colegas acadêmicos deterministas, o doutor diz a certa altura: 

 

Parece haver uma sutil mas profunda confusão que martiriza todos os que partilham a crença determinista, metodista e racionalista: a confusão entre o desejo de observar a agitação do universo – o que é perfeitamente admirável – e o desejo de explicá-lao que é patentemente absurdo. (The Chess Garden, pág. 144, trad. BT) 




Os jogos em geral constituem ilhas de coerência onde o absurdo penetra com dificuldade: mesmo os jogos que envolvem a sorte o fazem sob regras estritamente controladas. O jogo nos dá uma ilusão de segurança, de praticar uma atividade cujos propósitos e limites estão definidos com clareza, o que não se pode dizer da Vida. 

 

No mundo dos jogos, conflitos e decepções e até violências não estão ausentes; mas esse mundo, feito de conjuntos de regras, consegue estabelecer um limite entre ordem e caos. 

 

Ele não via a história do pensamento e do conhecimento como um registro do esclarecimento, mas um desfile de planilhas e esquemas em constante mudança e em constante disputa entre si, e nenhum deles era capaz de definir uma idéia sem ao mesmo tempo obscurecer outra.

(p. 121, trad. BT) 

 

É o tipo do livro capaz de gerar em torno de si uma espécie de fã-clube de gente disposta a analisar cada um de seus personagens e episódios para descobrir as correspondências entre o mundo real do Doutor e o seu mundo de fantasia – tal como vemos, por exemplo, em O Mágico de Oz, onde grande parte da população de Oz é um reflexo das pessoas com quem Dorothy convive na sua fazenda do Kansas. 

 

O Doutor é um cientista e um visionário, ao mesmo tempo, e produz ao longo de sua vida uma relação tensa, esticada, entre realidade e imaginação, como um elástico que mantém unidas duas formas de ver que tendem a se afastar uma da outra. Ou seja, mais ou menos o que a literatura fantástica (ou literatura “do insólito”, “da imaginação”, “de fantasia”, etc.) procura fazer. 

 

Outra coisa em que vim a acreditar é que a verdade nos é concedida exatamente na medida e na forma apropriadas a cada um de nós, individualmente. Além disso, creio que a tendência da verdade não é, como pode às vezes parecer, sumir e depois mostrar-se novamente. A tendência da verdade é manter-se constante. Desse modo, quando um homem se dispõe a fitar de frente o que quer que esteja à sua volta – seja isto o que fôr – ele encontrará a verdade ali, à sua espera. Fui claro? 

(p. 413, trad. BT)

 




 

 




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