quarta-feira, 6 de novembro de 2024

5120) "Fullgás: a serpente da década de 80" (6.11.2024)

 


(ilustrações: obras da exposição)

 

A década de 1980 foi uma época curiosa. (Qual década não é?)  Cada pessoa vive essas épocas de maneira diferente, é claro. Me lembro de já ter lido uma entrevista com uma dançarina russa do Balé Bolshoi; perguntaram-lhe qual foi o tempo mais feliz de sua vida. Ela disse que foram os primeiros anos da década de 1940. O entrevistador espantou-se: “Durante a II Guerra Mundial, com todo aquele horror, fome, dificuldades?...”  E ela disse: “Naquele tempo eu era jovem, bonita, todo mundo gostava de mim...” 

Eu era jovem na década de 1980; não direi que era bonito, mas era confiante. Foram os anos em que comecei a vir de maneira constante ao Rio de Janeiro e São Paulo, e acabei me fixando no Rio a partir de 1982. 

E foram – acho que ninguém esquece disto – os últimos anos da ditadura militar, com o moribundo e escoiceante governo do general João Figueiredo, seguido pelos Anos Sarney, e depois os anos Fernando Collor. Inesquecíveis. 


 

Na minha cabeça, e por critérios mais históricos do que numéricos, a “década de 80” começou na Lei da Anistia de agosto de 1979 e encerrou-se em dezembro de 1992, com a renúncia de Fernando Collor de Mello. 

Foi também o tempo do Rock-BR, e guardo com carinho a memória das vezes em que vi ao vivo, a poucos metros de distância do palco, os primeiros shows de Cazuza e o Barão Vermelho, os Titãs, os Paralamas do Sucesso, a Blitz, RPM, Renato Russo (que pena, nunca vi ao vivo o Legião Urbana completo), Lulu Santos, Celso Blues Boy... A lista é longa. 

Foi também a década em que mergulhei profissionalmente na ficção científica, com a publicação de O Que é Ficção Científica (Brasiliense, 1986) e A Espinha Dorsal da Memória (Caminho, 1989), além de farta colaboração nos fanzines. (Sim – era a época dos fanzines, que foram uma espécie de Curso Preparatório Para a Internet.) 


 

A exposição FULLGÁS, com curadoria de Raphael Fonseca juntamente com Amanda Tavares e Tálisson Melo, estará no CCBB do Rio de Janeiro de 2 de outubro deste ano até 27 de janeiro de 2025.  É um balanço das artes visuais brasileiras dos anos 1980, dividido em cinco partes, tituladas a partir de canções do Rock-BR daquele período: "Que país é este" (1987), "Beat acelerado" (1985), "Diversões eletrônicas" (1980), "Pássaros na garganta" (1982) e "O tempo não para" (1988). 

Por uma melancólica coincidência, o título da própria exposição alude a uma canção (gravada por Marina) do poeta Antonio Cícero, falecido recentemente. 

A convite do curador fiz um dos textos de apresentação para o Catálogo, “O Mistério da Mídia Ambiente”, referente à seção “Diversões Eletrônicas”. 


 

(...) Aquela foi a nossa última década sem Internet, nossa última década de mundo opaco, sem conexões, sem telepatia telefônica, sem esta vasta sinfonia de sinapses coletivas numa teia de máquinas cada vez mais numerosas, menores e mais baratas.

 

O futuro, como quse sempre, chegou primeiro nos livros, e só depois nos gadgets vídeo-digitais-eletrônicos. O ciberespaço e a realidade virtual estavam previstos, à maneira vaga e contraditória das verdadeiras profecias, na trilogia “Neuromancer” de William Gibson (Neuromancer 1984, Count Zero 1986 e Mona Lisa Overdrive 1988). 

 

Por esse portal se esgueiraram as mais variadas tecnologias da mente: o chip implantado, as redes neurais, todas as formas de simbiose entre os microcircuitos integrados e as pequeninas células cinzentas. (...) 

(do Catálogo)



As artes plásticas, ou artes visuais, são uma Casa onde nunca entrei. Sempre olhei as coisas que tem lá dentro – mas olhei da calçada, porque os janelões são imensos, as vidraças enormes. 

Para um servo da palavra, como eu, um quadro é misterioso porque tem um impacto instantâneo. Vai direto a alguma medula sensível do inconsciente coletivo. O olho bate, a mente responde. A gente não entende por que motivo está se sentindo daquela forma. Um ou dois minutos depois a cabeça pensante começa a funcionar e a gente passa a elaborar explicações, teorias, associações de idéias, citações. 

Os fios da memória coletiva podem ser atados continuamente uns aos outros, sem cessar, porque com jeito tudo se compara,  tudo se confronta e se avalia.  Toda arte acaba sendo envolvida num casulo de possíveis explicações e problematizações, que a protege e a assimila. Mas o primeiro impacto é sempre irracional: o olho e o cérebro dialogando entre si sem passar pela alfândega fiscalizadora das ideologias estéticas. Estas só chegam depois, correndo, arquejando, tentando carimbar e rubricar um fato já consumado. 




Em algum momento do meu texto fiz alguma referência indireta à obra de J. G. Ballard, autor que descobri durante a década de 1980, ao tempo em que descobria o som de Arrigo Barnabé e Fausto Fawcett. A obra de Ballard é um contraponto a essa década de espetacularização da política – os anos Reagan e os anos Thatcher brandindo iscas de enriquecimento instantâneo. 

Ballard escreveu uma série de romances imaginando o  fim do mundo de formas diferentes: The Wind from Nowhere, The Drowned World, The Crystal World, The Drought... Foi a década que de certo modo desmantelou a Guerra Fria e seus terrores e a substituiu por uma versão plastificada de um Paraíso do consumo conspícuo e do lazer profissional. Os contos de Ballard, repletos de artistas plásticos, arquitetos, escritores, gente das artes cênicas e da publicidade, são uma ficção científica voltada para o contemporâneo – aquilo que William Gibson, que surgiu logo depois dele, chamava de “a FC que está cinco minutos no futuro”. 


 

A serpente era a mesma, mas sua pele nova era composta por milhões de escamas de cristal líquido, cada uma delas um pequeno écran demoníaco, personalizado, piscando plimplins. Tecendo mandalas e fractais em cores cítricas, em néons, numa computação gráfica engatinhando as primeiras ousadias. 

 

Nas ruas, a floração de peles tatuadas emergindo à luz do sol ou do metrô, em contraponto aos muros e fachadas cada vez mais cobertos de pichações inarticuladas, logomarcas em forma de garranchos pré-verbais, “rabiscos sem intenção alfabética”. 

(do Catálogo)

 


 

No Brasil, foi a década pós-Anistia, a euforia dos retornados, os últimos tropeções e perdigotos do governo do general Figueiredo, a eleição e via-crucis de Tancredo Neves... E finalmente a posse a-contragosto e a gestão claudicante de José Sarney – solução brasileira para o velho problema de “é preciso mudar para que tudo permaneça na mesma”. 

Todos nós temos uma certa inclinação a reter do passado distante o que convém à nossa saudade ou ao nosso trauma pessoal. A arte é nossa memória coletiva (não a única, por certo); temos que reencontrar nela não só o que queremos lembrar, mas o que queríamos ter esquecido, o que de fato esquecemos, o que estamos sabendo somente agora... O Passado não cessa de nos surpreender. 


 

Não importa: o afrouxamento da Censura, pelo menos, foi um oxigênio revigorante para a música, a literatura, as artes plásticas. O cinema teria que aguardar sua Retomada para a década seguinte, mas as cidades se incendiavam ao som do Rock-BR – cujo repertório serve de guia às cinco seções em que esta Exposição se organiza. 

 

High tech and low life. Alta tecnologia nas mãos de gente de baixa classe social. O motto dos cyberpunks parecia ter sido feito olhando para o Brasil, para esta patriamada disposta a “colocar nas mãos do índio o botão da informática”. O Brasil era um Chevrolet Malibu 1964 levando na mala alguma coisa brilhante, preciosa e mortal, como em Repo Man (Alex Cox, 1984). Um país-geringonça com manutenção precária, arrastando consigo um latifúndio de tesouros. Tesouros que ele ou não conhece ou não sabe como aproveitar. 

 

A serpente mudou de casca sem deixar de ser serpente. Deixou e recolheu pelo caminho ditaduras tecnocráticas, cristianismo neo-liberal, milagres truculentos, constituições quebradiças... Fugindo sempre ao eterno perseguidor que a ameaçava: o povo que a devorava viva enquanto era devorado vivo. 

(do Catálogo)

 

 


“Nossa linda juventude, página de um livro bom...”  O livro era bom, mas, como o Livro de Areia do conto de Borges, depois que o livro se fecha ninguém consegue achar de novo aquela página. 

 

 



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