quinta-feira, 19 de junho de 2008

0415) O inimigo oculto (18.7.2004)


(Nosferatu, de F. W. Murnau)

A Arte da Narrativa é a arte da elipse, da omissão, da alusão indireta. Não se pode contar tudo, mostrar tudo: é preciso saber escolher o que mostrar. Artistas mais hábeis se dão o luxo de deixar de mostrar justamente o mais importante. No filme O bandido Giuliano, de Francesco Rosi, uma reconstituição da vida do famoso bandoleiro da Sicília, o personagem principal quase não aparece. Tudo é contado de maneira indireta.

Chico Buarque tem uma canção clássica dirigida a um inimigo que não é jamais nomeado: “Apesar de você” (1970). Era a época da ditadura militar, e ninguém tinha dúvida sobre a quem ele se referia: “Hoje você é quem manda, falou-tá-falado, não tem discussão... Apesar de você, amanhã há de ser outro dia.” O recado político, a ameaça pré-datada tipo “seu sal tá se pisando” era mais do que clara. Com a imprensa, no entanto, o compositor desconversava: “Olha, o ´você´ aí pode ser qualquer pessoa que está nos enchendo o saco: um síndico antipático, um patrão injusto, um pai autoritário...”

Em outra canção de Chico, “Ano Novo” (1967), o poder autoritário era personificado num vago “rei”, que entra na cidade, manda tocar sinos, hastear bandeiras, e quer ver todo mundo contente, “porque é Ano Novo”. Ao não se referir com precisão a um momento político em particular, o poeta transforma sua letra num recado atemporal, sem prazo de validade nem de vencimento. Em vez de dizer quem é o “rei”, o poeta prefere descrever sua gente, que está “vivendo a muque”, e ironiza: “E quem já viu de pé o mesmo velho ovo hoje rica contente, porque é Ano Novo.” Os versos de 1967 poderiam ter sido escritos hoje: “E ao meu amigo que não vê mais graça, todo ano que passa só lhe faz chorar, eu disse: Homem, tenha seu orgulho, não faça barulho, o rei não vai gostar...”

Oculto, o inimigo é mais ameaçador. Uma velha máxima do filme de terror diz que não se deve mostrar o monstro, e sim o medo que ele produz. Outra canção de Chico, “Maninha”, de 1977, diz: “Se lembra da fogueira? Se lembra dos balões? Se lembra dos luares dos sertões?” O poeta dirige-se a uma irmãzinha, e recorda um tempo feliz da infância dos dois: “Se lembra quando toda modinha falava de amor? Pois nunca mais cantei, ó maninha, depois que ele chegou.” A letra é nostálgica, intimista, e tem como uma delicadeza a mais o fato de ter sido gravada por Miúcha, irmã de Chico. Ele insiste na comparação entre passado e presente: “Se lembra do jardim, ó maninha, coberto de flor? Pois hoje só dá erva daninha, no chão que ele pisou.” Quem é “ele”? Provavelmente é o mesmo “você” da outra música. Nunca nomeado, nunca descrito, este inimigo oculto continua poeticamente vivo, rondando o poema por todos os lados, mesmo que pareça ter sumido do mapa político, como o poeta prometia: “Mas não me deixe assim, tão sozinho, a me torturar... Que um dia ele vai embora, maninha, pra nunca mais voltar.”

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