sexta-feira, 11 de julho de 2025

5189) "O Eternauta" e o fim do mundo (11.7.2025)




 
Sabemos com mais clareza, e mais riqueza de hipóteses, como vai ser o fim da humanidade do que como foi o seu começo.  Nosso começo se perde em hipóteses abstratas nos livros de paleontologia ou antropologia. Nosso fim, por outro lado, vem sendo insistentemente escrito, dirigido, imaginado, fantasiado e encenado de todas as maneiras possíveis no cinema e na literatura. 
 
Estou assistindo o seriado da Netflix O Eternauta (Bruno Stagnaro, 2025), baseado na famosa série de quadrinhos escrita por Hector Oesterheld e desenhada por Francisco Solano López e, depois, por Alberto Breccia. O Eternauta é um dos orgulhos da FC argentina desde seu lançamento original em 1957-59, seguido por uma segunda série retomada em 1969. 
 
Nunca li os quadrinhos; até tenho uma edição aqui, mas preferi mergulhar direto na série e avaliar seu impacto sem comparações com outro material. 
 
Não comparar, entretanto, é impossível. Histórias de fim do mundo continuam a pipocar por todos os lados. Por diferentes motivos, assisti duas destas obras ultimamente. 



 
No YouTube, vi há algumas semanas duas versões diferentes do clássico de John Wyndham The Day of the Triffids, o famoso livro em que uma chuva de meteoros deixa a humanidade (quase) toda cega, perseguida por plantas capazes de caminhar. 
 
Há duas versões em vídeo: uma versão mais antiga, de 1981, com seis episódios (direção de Ken Hannam), muito fiel ao livro original. E uma série de 2009, com dois episódios longos, de Nick Copus, que se afasta muito do livro mas tem bons efeitos especiais e também vale uma olhada. 
 
E dias atrás vi meio por acaso o filme A Quiet Place: Day One (2024, Michael Sarnoski), daquela franquia em que a Terra é invadida por seres bestiais com audição agudíssima, e quem fizer o menor barulho é rapidamente localizado e devorado. 
 
E o pesadelo recorrente volta. É uma Londres de ruas vazias mas com carros batidos, carros virados, corpos caídos no chão, gente cega tateando sem rumo. É uma Nova York de ruas vazias, carros incendiados, gente prendendo a respiração e caminhando na ponta dos pés por uma Quinta Avenida juncada de cadáveres. 
 
E agora é uma Buenos Aires coberta por uma neve venenosa que dá morte instantânea, as ruas vazias a não ser pelos carros batidos e os corpos deitados na neve, de celular em punho. 

 


O primeiro episódio de O Eternauta mostra meia dúzia de amigos presos em casa, surpreendidos pela catástrofe durante uma noitada de baralho e uísque. De repente falta luz, falta sinal de celular, falta rádio, falta tudo, e quem sai à calçada cai morto sem tempo para dar um ai. Todo esse episódio lembra uma peça teatral asfixiante, claustrofóbica, com pessoas aterrorizadas olhando o tempo inteiro através de janelas, desesperando-se com as famílias que estão longe e indefesas. 




Uma pergunta que vez por outra me fazem é sobre a possibilidade de um teatro de ficção científica. Mais de uma vez me ocorreu a idéia óbvia de um grupo de pessoas trancadas num local, protegendo-se minimamente de uma catástrofe que acontece lá fora, e discutindo como escapar dali, o que fazer, o que aconteceu de fato, como poderia ter sido evitado, quem foi o culpado da destruição do mundo – enfim, uma situação que tanto pode tender para o pessimismo existencial (as peças de Samuel Beckett, Jean-Paul Sartre) quanto para o questionamento da realidade (Philip K. Dick, J. G. Ballard). 
 
E foi justamente a obra de Ballard (principalmente High Rise ou The Drowned World) que me veio à mente no episódio 2, quando Juan Salvo (o onipresente Ricardo Darín) protege-se com capotes e máscara e sai pela cidade, vendo o desespero de pessoas trancafiadas em vagões de trem ou acuadas dentro do prédio em que moram. 
 
Nesses momentos, surge com força total aquela sensação não muito honrosa de que no momento do fim do mundo a primeira vítima é a solidariedade. Tudo se transforma num salve-se quem puder governado pela lei do mais forte. Vizinhos de rua, vizinhos de prédio, a turma do café, a turma do bar? Está todo mundo de rifle em punho. Ninguém conhece ninguém. 




Aos poucos as pessoas vão saindo à rua; grupos encapotados e com máscaras anti-gás, de arma em punho, começam a disputar os territórios. Enquanto isso, a neve venenosa continua a cair, cobrindo o piso, os prédios, os cadáveres. Buenos Aires inteira está coberta por essa geada branca e eles começam a perceber que ela é apenas a primeira ofensiva de limpeza que precede uma invasão. 
 
O “sobrevivencialismo” (“survivalism”) é uma corrente de pensamento que se amplia a cada década: pessoas que se dedicam a imaginar possíveis cenários de fim do  mundo, e possíveis estratégia de sobrevivência para bolsões localizados de seres humanos. Um conceito que me parece frequente nessa discussão (envolvendo videogames, ficção científica, ativismo cultural, ambientalismo, etc.) é de que não faz muito sentido falar no “fim do planeta” – o planeta continuará existindo, mesmo após um apocalipse nuclear, e mesmo precisando de dezenas de milhões de anos para recuperar a Natureza que ostenta hoje. 




Não faz sentido, também, falar no “fim da humanidade” – as catástrofes mais prováveis, mesmo nucleares, não chegariam a eliminá-la, mesmo reduzindo-a a uma pequena fração do que é hoje. Faz mais sentido falar o “fim da civilização”, do mundo como está organizado hoje. No caso de um cataclismo em escala planetária, o conceito de civilização industrial-militar-político-financeira iria ser esquartejado e recomposto de maneiras imprevisíveis. 
 
O Eternauta opta por mostrar uma invasão alienígena, um tanto no estilo de A Guerra dos Mundos de H. G. Wells (1898). A certa altura, a cidade é tomada por monstros, os “cascarudos” (o termo argentino original), besouros do tamanho de um bezerro, rápidos, incansáveis. Os monstros envolvem cadáveres numa espécie de casulo de seda, como os fios que as aranhas segregam, e os arrastam para baixo da terra. E demonstram uma certa organização: amontoam automóveis para bloquear ruas, com a rapidez de quem ensaiou bastante (ou de quem está sendo manipulado à distância). 



A primeira temporada (seis episódios) está completa no Netflix, e anuncia-se que a segunda já foi aprovada.
 
 




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