E dias atrás vi meio por acaso o filme A Quiet Place: Day One (2024, Michael Sarnoski), daquela franquia em que a Terra é invadida por seres bestiais com audição agudíssima, e quem fizer o menor barulho é rapidamente localizado e devorado.
E o pesadelo recorrente volta. É uma Londres de ruas vazias mas com carros batidos, carros virados, corpos caídos no chão, gente cega tateando sem rumo. É uma Nova York de ruas vazias, carros incendiados, gente prendendo a respiração e caminhando na ponta dos pés por uma Quinta Avenida juncada de cadáveres.
E agora é uma Buenos Aires coberta por uma neve venenosa que dá morte instantânea, as ruas vazias a não ser pelos carros batidos e os corpos deitados na neve, de celular em punho.
O primeiro episódio de O Eternauta mostra meia dúzia de amigos presos em casa, surpreendidos pela catástrofe durante uma noitada de baralho e uísque. De repente falta luz, falta sinal de celular, falta rádio, falta tudo, e quem sai à calçada cai morto sem tempo para dar um ai. Todo esse episódio lembra uma peça teatral asfixiante, claustrofóbica, com pessoas aterrorizadas olhando o tempo inteiro através de janelas, desesperando-se com as famílias que estão longe e indefesas.
E foi justamente a obra de Ballard (principalmente High Rise ou The Drowned World) que me veio à mente no episódio 2, quando Juan Salvo (o onipresente Ricardo Darín) protege-se com capotes e máscara e sai pela cidade, vendo o desespero de pessoas trancafiadas em vagões de trem ou acuadas dentro do prédio em que moram.
Nesses momentos, surge com força total aquela sensação não muito honrosa de que no momento do fim do mundo a primeira vítima é a solidariedade. Tudo se transforma num salve-se quem puder governado pela lei do mais forte. Vizinhos de rua, vizinhos de prédio, a turma do café, a turma do bar? Está todo mundo de rifle em punho. Ninguém conhece ninguém.
Aos poucos as pessoas vão saindo à rua; grupos encapotados e com máscaras anti-gás, de arma em punho, começam a disputar os territórios. Enquanto isso, a neve venenosa continua a cair, cobrindo o piso, os prédios, os cadáveres. Buenos Aires inteira está coberta por essa geada branca e eles começam a perceber que ela é apenas a primeira ofensiva de limpeza que precede uma invasão.
O “sobrevivencialismo” (“survivalism”) é uma corrente de pensamento que se amplia a cada década: pessoas que se dedicam a imaginar possíveis cenários de fim do mundo, e possíveis estratégia de sobrevivência para bolsões localizados de seres humanos. Um conceito que me parece frequente nessa discussão (envolvendo videogames, ficção científica, ativismo cultural, ambientalismo, etc.) é de que não faz muito sentido falar no “fim do planeta” – o planeta continuará existindo, mesmo após um apocalipse nuclear, e mesmo precisando de dezenas de milhões de anos para recuperar a Natureza que ostenta hoje.
Não faz sentido, também, falar no “fim da humanidade” – as catástrofes mais prováveis, mesmo nucleares, não chegariam a eliminá-la, mesmo reduzindo-a a uma pequena fração do que é hoje. Faz mais sentido falar o “fim da civilização”, do mundo como está organizado hoje. No caso de um cataclismo em escala planetária, o conceito de civilização industrial-militar-político-financeira iria ser esquartejado e recomposto de maneiras imprevisíveis.
O Eternauta opta por mostrar uma invasão alienígena, um tanto no estilo de A Guerra dos Mundos de H. G. Wells (1898). A certa altura, a cidade é tomada por monstros, os “cascarudos” (o termo argentino original), besouros do tamanho de um bezerro, rápidos, incansáveis. Os monstros envolvem cadáveres numa espécie de casulo de seda, como os fios que as aranhas segregam, e os arrastam para baixo da terra. E demonstram uma certa organização: amontoam automóveis para bloquear ruas, com a rapidez de quem ensaiou bastante (ou de quem está sendo manipulado à distância).
A primeira temporada (seis episódios) está completa no Netflix, e anuncia-se que a segunda já foi aprovada.
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