De vez em quando o povo descobre (ou inventa) uma
palavra. Ela começa com um susto-de-novidade, projetando uma luz diferente e
interessante na frase onde se instala. “Que maneira legal de dizer isto”,
pensam as pessoas, e se danam a usá-la a torto e a direito.
É nova. É
diferente. Desperta a atenção de quem
ouve, e é sempre bom ter um jeito-de-dizer capaz de arrancar as pessoas do
piloto-automático. Tirar as pessoas do transe-zumbiforme em que elas parecem
estar mergulhadas, até mesmo quando estão andando, olhando, falando alto.
É o caso atual da palavra “incontornável”. Num efeito
curiosamente metalinguístico, ficou difícil contornar essa palavra, que volta e
meia insiste em se postar à nossa frente, mãos nos quadris, atitude
desafiadora. Não importam as voltas e volteios do nosso discurso verbal, a
gente acaba indo na direção dela, tentando contorná-la como um motorista
contorna um girador, mas... debalde.
Depois que esbarrei nela cinco vezes seguidas antes das
três da tarde, nas redes sociais, fiz uma promessa muda de nunca utilizá-la. Percebi
que já estava se fossilizando em clichê, adquirindo as mesmas propriedade
anti-pensantes da maioria do nosso vocabulário comum. Estava indo para a mesma
prateleira onde já estão, por exemplo, instigante
e camadas.
“Camadas” é a besta-sinistra do meu confrade Lira Neto,
cuidador do idioma, a quem irrita a onipresença dessa metáfora em tudo quanto é
assunto. Tudo hoje em dia se define em termos de “camadas”.
Há, de fato, muitas camadas superpostas no uso desse
termo. No começo de tudo, foi útil
trazer esse aspecto para o meio da discussão, porque todo mundo começou a
admitir que, sim, não só no mundo físico como no mundo das idéias tudo se
organiza em películas superpostas. Tudo é constituído de layers, como as cascas geológicas que se recobrem umas às outras em
nossos continentes. Por baixo de alguma coisa há sempre uma coisa diferente.
Já disse algum pensador que se arranharmos a superfície
de um cínico vamos sempre encontrar um idealista desiludido. E Fausto Fawcett,
o Bardo Cibernético de Copacabana, já observou que se a gente raspar um Jetson
vai encontrar por baixo um Flintstone. Camadas.
Por que apareceu, de um momento para outro, essa
necessidade de definir tudo em termos de camadas? Porque se trata de uma
palavra instigante, e aí chegamos a esse outro piercing verbal, penduricalho
que, por volta dos anos 1980, todo mundo trazia na ponta da língua.
Falei disso aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/01/0755-palavra-instigante-1982005.html
São palavras que já existiam no idioma mas estavam meio
que na despensa ou no freezer, e
quando alguém lhes dá uma requentada e as traz para o centro da mesa não chegam
pra quem quer.
É longa a lista de palavras atualmente na moda, e já com
verniz de clichê, a ponto de franzir a testa de muita gente. Ressignificar. Potente.
Território. Narrativa. Imersão.
Literalmente. Icônico. Multifacetado.
Resiliência. Empoderamento.
(Lewis Carroll, Through the Looking-Glass, ilustração de Sir John Tenniel)
Estas palavras são idiotas? De jeito nennhum, são
palavras bastante úteis e expressivas, e eu já devo ter usado todas elas. Só
que, no momento, faço questão de não usar mais – porque já prevejo as caretas
resignadas de muita gente. “Ai meu Deus, de novo essa palavra idiota, não
aguento mais.”
As palavras são como um chiclete, começam com um gosto
agradável de hortelã ou de cereja, mas esse gosto logo desaparece, vai-se
embora o susto-de-novidade que uma palavra invulgar contém. O açúcar se
dissolve todo, e fica só a borrachinha. O chiclete vira clichê.
(arte: Philadelpho Menezes)
Penso às vezes que isto acontece porque vivemos numa
bolha cultural onde é muito rápido, para uma palavra, entrar na moda; e pelas
mesmas razões é muito rápido tornar-se lugar-comum. Num país de mais de 200
milhões de usuários do idioma, essas sucessões de modismos e clichês se dão
numa bolha minúscula de meio milhão a um milhão de leitores, se tanto.
O ricochete interno nas paredes da bolha (leia-se
imprensa eletrônica; leia-se redes sociais) é muito rápido. As palavras viralizam
nas redes sociais, com todo seu charme de novidade e potência (êpa) expressiva;
e logo viralizam mesmo, literalmente (êpa), como vírus, doença, uma coisa chata
que quando a gente vê já contraiu.
Alguns meses de uso intenso, de incômoda reiteração... e
pronto, a palavra está puída, desgastada, desvalorizada, eu diria quase
prostituída por tantos usos e abusos.
Pobres das palavras, que culpa alguma carregam. Pobre da
palavra incontornável, quando descobre que não é indispensável, inevitável,
imprescindível.