quinta-feira, 21 de novembro de 2024

5125) As cidades invisíveis de Calvino (21.11.2024)

 


 

É um dos livros mais famosos e mais comentados de Ítalo Calvino, e é curioso que o seja, quando rompe com duas das convenções mais enraizadas da literatura de hoje: 

 

1) a de que um livro precisa ter um gênero nítido, definido (ser “um romance” ou ser “um livro de contos”, no caso); e 

 

2) a de que um texto de ficção precisa ser uma obra narrativa, com começo, meio e fim. 

 

As Cidades Invisíveis (Companhia das Letras, 1991, trad. Diogo Mainardi; edição original, 1972) se esquiva desses dois compromissos. É uma narrativa múltipla, auto-geradora, que brota de seu próprio centro, sem avançar na direção de um final. Não é uma narração, é um conjunto de descrições. 

 

Marco Polo descreve para Kublai Khan as cidades que encontrou nas suas viagens: esta é a narrativa-moldura que contém todas as outras, mas é uma narrativa que não se modifica, não “avança”, não contém conflito algum, nem desenvolvimento, nem resolução. Uma situação estática, de dois homens trocando idéias, e examinando exemplos – como se percorressem uma galeria de quadros, comentando cada um deles. 

 

Calvino subdivide o livro em várias categorias: “As Cidades e os Símbolos”, “As Cidades e a Memória”, “As Cidades e o Desejo”, etc.  São ao todo 55 cidades imaginárias, bizarras, surrealistas, fantasiosas, utópicas, sinistras... 



Sua enumeração faz do livro algo semelhante àqueles quadros de Brueghel onde o artista acumula, num mesmo espaço, lado a lado, exemplos de brincadeiras de crianças ou de ditados populares. São as “obras por agrupamento”, obras cuja natureza não é narrativa (=contar uma história), e sim descritiva ou enumerativa. 

 

Essa técnica de agrupamento deixa o livro numa oscilação permanente entre um “romance” e uma “coletânea de contos”, sem se definir claramente por nenhuma das duas fórmulas costumeiras. 

 

E no entanto, o livro é fascinante, é movimentado, tem sucesso junto ao público. Por que? 



(ilustração: Cecilia Reeve)

 

Um dos motivos, talvez o principal, é a riqueza da imaginação de Calvino, uma imaginação exuberante, variada, detalhada, que se realiza principalmente através de sugestões visuais vívidas, descrições capazes de valer por narrativas inteiras.  

 

No centro de Fedora, metrópole de pedra cinzenta, há um palácio de metal com uma esfera de vidro em cada cômodo. Dentro de cada esfera, vê-se uma cidade azul que é o modelo para uma outra Fedora. (p. 32) 

 

Estátuas e escudos reproduzem imagens de leões delfins torres estrelas: símbolo de que alguma coisa – sabe-se lá o quê tem como símbolo um leão ou delfim ou torre ou estrela. Outros símbolos advertem aquilo que é proibido em algum lugar – entrar na viela com carroças, urinar atrás do quiosque, pescar com vara na ponte – e aquilo que é permitido – dar de beber às zebras, jogar bocha, incinerar o cadáver dos parentes. (p. 17) 

 

A riqueza desses detalhes torna este livro equivalente àqueles quadros em que cada figura minúscula está pintada com verossimilhança anatômica, de atitude, de figurino; cada pequena ação congelada no momento sugere todo um enredo; e em cada um desses detalhes há algo de inesperado, de pitoresco, de absurdo, de característico... 



(ilustração: Pooja Patel)

 

Existe a enumeração incessante de cidades, e em cada cidade uma enumeração de pessoas, de lugares, de logradouros, de acontecimentos. O “formato” do livro não é, portanto, o de uma seta que parte do princípio até atingir o fim. Ele se assemelha a um cacho de bolhas, em que novas bolhas vão surgindo e crescendo, cada vez mais numerosas, mas sem uma direção, sem um fim em vista. 

 

As Cidades Invisíveis é, em tese, um livro que poderia ser indefinidamente prolongado, multiplicado, sem que se alterasse o seu formato, a sua estrutura interna. Uma estrutura composta por acréscimo, não por desenvolvimento. 



(ilustração: Karina Puente)

 

Eufêmia (As Cidades e as Trocas, 1) é a cidade onde se cultua a imaginação, onde basta um mote para gerar uma narrativa: 

 

À noite, ao redor das fogueiras em torno do mercado, sentados em sacos ou em barris ou deitados em montes de tapetes, para cada palavra que se diz – como “lobo”, “irmã”, “tesouro escondido”, “batalha”, “Sarna”, “amantes” – os outros contam uma história de lobos, de irmãs, de tesouros, de sarna, de amantes, de batalhas. E sabem que na longa viagem de retorno, quando, para permanecerem acordados bambaleando no camelo ou no junco, puserem-se a pensar nas próprias recordações, o lobo terá se transformado num outro lobo, a irmã numa irmã diferente, a batalha em outras batalhas, ao retornar de Eufêmia, a cidade em que se troca de memória em todos os solstícios e equinócios.” (p. 38-39) 

 

Teodora (As Cidades Ocultas, 4) é a cidade que se dedica ao extermínio dos animais incômodos, em ondas sucessivas de chacinas: corvos, serpentes, aranhas, cupins, ratos, todas as espécies daninhas vão sendo liquidadas em massa, até desaparecerem por completo. Mas... 

 

“Relegada por longas eras a esconderijos apartados, desde que fora despojada do sistema das espécies agora extintas, a outra fauna retornava à luz dos porões da biblioteca onde se conservavam os incunábulos, saltava dos capitéis e dos canais, empoleirava-se no travesseiro dos dormentes. As esfinges, os grifos, as quimeras, os dragões, os hircocervos, as harpias, as hidras, os unicórnios, os basiliscos retomavam a posse de sua cidade.” (p. 145) 

 

Será exagero ver nisto uma “vingança” da literatura fantástica contra o realismo documental?... 




(ilustração: Eda Akaltun)

 

Cada cidade vale como metáfora ou alegoria de alguma coisa: algum processo mental, algum arquétipo coletivo, algum exagero bizarro, alguma demonstração pelo absurdo. 

 

As cidades de Calvino têm todas elas nomes de mulheres: Esmeraldina, Leandra, Irene, Cecília, Armila, Eudóxia... A certa altura o leitor brasileiro se depara até com uma Olinda (As Cidades Ocultas, 1). 



(ilustração: Leighton Connor)

 

Por que mulheres?...  Talvez porque as cidades são múltiplas, mercuriais; contraditórias, mas vivendo dessas contradições. Talvez porque sejam, alternada e simultaneamente, acolhedoras e inabarcáveis. Talvez porque digamos “minha cidade” como dizemos “minha mulher”, não como indicativo de posse, mas de amálgama. 

 

Cidades onde predomina um senso de justiça que muitas vezes não alcançamos, é ela que nos alcança e nos explica a nós mesmos, como em Berenice (As Cidades Ocultas, 5): 

 

“Na origem da cidade dos justos está oculta, por sua vez, uma semente maligna: a certeza e o orgulho de serem justos – e de sê-lo mais do que tantos outros que dizem ser mais justos do que os justos --  fermentando rancores, rivalidades, teimosias, e o natural desejo de represália contra os injustos se contamina pelo anseio de estar em seu lugar e fazer o mesmo que eles” (p. 147) 

 

Calvino tem uma imaginação fractal, no sentido de que cada detalhe de uma história sua é rico o bastante para sugerir um subtexto tão complexo quanto a história principal. Daí o sucesso deste livro. Percorrê-lo não é (como seria num romance convencional) acompanhar a vida de uma pessoa, é caminhar através de uma cidade. 


(ilustração: Sofia Correa) 

 

 

 





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