quinta-feira, 3 de outubro de 2024

5108) Brecht e o elogio da dúvida (3.10.2024)




A poesia de idéias faz algumas pessoas torcerem o nariz, principalmente pessoas para quem a poesia é “de la musique, avant toute chose”, como queria o poeta Verlaine. A música, antes de tudo; só é poesia se contiver um jogo de sonoridades, de cadências, de ritmos, de harmonia entre as alternâncias de sons fortes e sons fracos, sons abertos e sons fechados... Enfim – as possibilidades, como sempre, são infinitas. 
 
Sou desses, e muitos destes cabelos-brancos-aqui se devem a noites em claro atrás de uma rima, ou de uma palavra de quatro sílabas com acento forte na terceira, e rimando com “E” anasalado. Para que? Para que aconteça música nesta linha. 
 
Por outro lado, também existe, e viva, e forte, a poesia de idéias, em que o tamanho ou o som das palavras são meros coadjuvantes de idéias, e estas, sim, têm que atingir o leitor como uma sequência de socos no plexo solar. 
 
Aí estão as odes oceânicas de Walt Whitman, derramando-se como um tsunami de revelações. Aí estão os poemas de “Alberto Caeiro” e “Álvaro de Campos”, dois Pessoas tão distintos um do outro, mas com essa força em comum: a força das idéias, da revelação de aspectos abstratos da vida que eles, com o serendipismo dos bons poetas, descobriram como reproduzir em frases impecáveis.  
 
Aí estão poemas como a “Procura da Poesia” de Carlos Drummond (idéia pura!), a “Poética” de Manuel Bandeira, a “Ode ao Burguês” de Mário de Andrade... Idéia pura. Há sonoridade ali, há percussão subliminar, há um perfume residual de melodia? Há, porque nada disso foi expulso ou proibido pelo autor – mas sente-se que quando a pena riscou o papel era a idéia que o empolgava, era a idéia a transmitir que fez gotejar suor na tinta. 
 
Bertolt Brecht é (segundo quem entende a língua alemã) um artesão da melodia poética, da rima, da assonância, da aliteração, quando lhe interessa; mas é também, quando lhe interessa, o dialético implacável que estala cada verso na página como um jogador estala na mesa uma carta de trunfo chegada na hora certa. 
 
Como não sei alemão, não posso traduzir-lhe os poemas; como leio esses poemas em três ou quatro línguas diferentes, me dou o prazer de... Não propriamente traduzir um deles, mas de trans-induzir, adaptar, re-arranjar, translatar, transpor, recompor... Enfim – uma tentativa a mais de aprender as idéias do “pobre B.B.”.  O poeta sua bastante quando escreve, mas quem traduz sua também. 
 
Este poema consta na verdade de alguns fragmentos mantidos juntos, em páginas separadas, e provavelmente era considerado incompleto, tanto assim que nunca foi publicado em vida do autor. Usei como fonte principal a tradução inglesa de Martin Esslin, e a partir dela tomei numerosas liberdades métricas, estróficas e vocabulares. 
 
Brecht sempre aconselhava: duvide. Vá devagar, pare, examine, pense, lembre, imagine, compare, revire essa idéia por todos os ângulos. Tem certeza? Tem dúvidas? Preste atenção em tudo, não se deixe arrastar por nada. Duvi-dê-é-dé. 
 
 
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ELOGIO DA DÚVIDA
(Bertolt Brecht, “Lob des Zweifels” - trad. BT)

Vamos brindar – à dúvida!
E você, trate com simpatia e respeito
o homem que escuta o que você fala
como quem testa uma moeda suspeita.
Seja esperto. Não dê sua palavra
com tanta certeza assim. 
 
Leia livros de história. Leia sobre
a fuga em pânico de tantos exércitos invencíveis.
Para onde quer que você olhe
há fortalezas inexpugnáveis desmoronando,
e mesmo que a Armada fosse incalculável
quando deixou o porto,
era sempre possível contar
quantos navios voltaram. 
 
Sempre há um dia em que
um homem pousa o pé no pico inatingível,
e um navio chega ao limite
do infinito mar. 
 
Como é belo ver cabeças que discordam
diante da indiscutível verdade!
Bravo! – para o médico que curou
o paciente desenganado.
 
Mas a mais bela das dúvidas
é quando os explorados e os ofendidos
erguem a cabeça,
e param de pensar que seu opressor
não pode ser derrotado.
 
* * *
 
Ah, como foi custosa esta verdade!
Quantos sacrifícios ela exigiu!
Como foi difícil perceber
que as coisas eram assim, e não assado!
Um dia, com um suspiro de alívio,
um homem a escreveu
no livro do conhecimento.
Por muito tempo, talvez, ali ela ficou
e muitas gerações com ela conviveram
e a tiveram como a sabedoria eterna,
e os intelectuais tratavam com escárnio
quem não sabia aquilo.
Mas pode acontecer então uma suspeita
porque algum experimento recente
mostrou que aquela verdade
está aberta à discussão...
A dúvida se espalha, até que um belo dia
outro homem vem, e a retira
do livro do conhecimento.
 
* * *
 
Ensurdecido por tantas ordens,
examinado
por doutores barbudos e declarado apto para a guerra,
inspecionado
por figurões ilustres com dragonas de ouro,
corrigido
por clérigos que lhe jogam na cara
um livro escrito pelo próprio Deus,
amestrado
por mestres impacientes, eis aí
o pobre homem,
enquanto lhe dizem que este é o melhor dos mundos
e que a goteira no teto do barraco
foi autorizada pessoalmente por Deus.
De fato: é bem complicado
duvidar de um mundo assim.
 
* * *
 
E existem os não-pensantes que não duvidam nunca.
Sua digestão é esplêndida, seu julgamento é infalível.
Eles não creem em fatos; só creem em si mesmos.
Na hora do vamos-ver, jogam os fatos pela janela.
Sua paciência consigo mesmos não tem limites.
Escutam as discussões
com os ouvidos de um alcaguete da polícia.
 
Os não-pensantes que nunca duvidam
equivalem aos pensantes que nunca agem.
Esses aí duvidam – não para chegar a uma conclusão, 
mas para não terem que decidir. Suas cabeças
só servem para acenar "que não”. Com rosto ansioso
eles avisam a tripulação do navio a pique
que a água é perigosa.
Ao ver o carrasco erguendo o machado,
perguntam se ele, também, não é um ser humano.
Murmurando que nem tudo ainda está claro,
vão para a cama.
Sua única ação é a de hesitar.
Sua frase favorita: ainda não é o momento de falar sobre isto.
 
* * *
Portanto, se você elogia a dúvida,
não elogie aquela dúvida
que é uma das formas do desespero.
De que adianta a um homem poder duvidar
se é incapaz de decidir?
 
O que se satisfaz
com duas ou três razões
pode agir de um modo errado,
mas o que precisa de muitas
fica sem ação ante o perigo.
 
Se você é um líder de pessoas
não esqueça
que só está ali
por ter duvidado de outros líderes.
Então, conceda aos seus seguidores
o direito de duvidar.
 
 


 
 
 
 








4 comentários:

  1. Talvez seja “seu pensamento”, e não “sem pensamento”, certo?

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Sexto Empírico assinaria embaixo para, em seguida, examinar (ou duvidar) uma vez mais

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