sábado, 31 de agosto de 2024

5097) Traduzir é perder (31.8.2024)



 
Traduzir é perder, porque traduzir é transformar, e toda transformação implica em abandonar a forma inicial. Quando traduzimos um texto em inglês para nossa língua, a primeira decisão que tomamos é perder o texto em inglês, abrir mão dele, sacrificá-lo, porque nossa intenção, em tese, é recriar aquele texto para pessoas que não leem em inglês (em russo, em árabe, em vietnamita, etc.). 
 
Por este raciocínio, traduzir é também ganhar? Porque afinal de contas a nova forma do texto vai trazer, inevitavelmente, elementos, estímulos, efeitos que não havia no original. 
 
Eu só traduzo do inglês, e este é um idioma relativamente cômodo, porque muitos brasileiros que leem literatura têm alguma idéia da língua inglesa. Não direi que todos são capazes de avaliar criticamente uma tradução, mas pelo menos podem pegar uma edição bilingüe e ficar olhando lá e cá, vendo os dois textos, onde coincidem, onde divergem. Deve-se pensar nesses leitores, quando se traduz algo. Ajuda a policiar os nossos excessos. 
 
É diferente quando se está traduzindo do idioma basco ou do húngaro. Em casos assim, um leitor como eu fica totalmente às mãos do tradutor. E de certo modo deve-se também pensar num leitor assim, num certo estágio do processo tradutório: o leitor que jamais aprenderá a língua original daquele livro, e que dependerá para sempre da nossa tradução. 
 
Por esta lógica, podemos afirmar, sim, sem muita fanfarra, que traduzir é ganhar, porque a perda de uma forma é simultânea ao aparecimento de outra, no momento em que o texto se transpôs para outra linguagem. 
 
Uma máxima fundamental da tradução é: “A tradução é um jogo onde geralmente se perde, na melhor das hipóteses se empata, e é proibido ganhar”. Ou seja: geralmente produzimos frases inferiores às do original, às vezes conseguimos algumas tão-boas-quanto, mas não temos o direito de redigir frases melhores.” 
 
Isto não impede que, na selva selvagem da vida real, haja tradutores “melhorando” adoidado os textos indefesos que lhes caem nas mãos. Paciência. 
 
Esta é uma questão importante, porque quando pensamos em “ganhar” tendemos a interpretar isto como “escrever algo melhor que o original” – e não se trata disto, absolutamente. Na tradução, é proibido melhorar o original, e esta é uma das questões mais desequilibrantes do ofício. Porque quando nos deparamos com uma frase meio desajeitada (principalmente quando traduzimos literatura best-seller e equivalentes) nossa tendência é entender o que o autor está tentando dizer, e dizê-lo de forma “ajeitada” em português. 
 
Inconscientemente, buscamos evitar os barbarismos do original, as incoerências do original, a má sonoridade, a sentença atravancada ou involuntariamente ambígua. E acabamos, involuntariamente, escrevendo “melhor” do que o original. Pelo mero impulso maquinal de tentar escrever bem. 
 
Um tipo de perda/ganho muito frequente – principalmente na tradução de poesia – é quando transferimos um efeito de um lugar para outro. Às vezes, digamos, o autor original usa um arcaísmo, uma palavra antiga, com um efeito premeditado; acontece que não temos um equivalente em português que produza o mesmo efeito. Uma solução às vezes possível é usar um arcaísmo equivalente em outra frase, em outro verso; resgata-se o efeito, mesmo mudando-o de endereço. 
 
Isso vale sempre? Não. Às vezes o arcaísmo (pode ser também uma gíria, ou um jargão técnico, ou uma palavra inventada, etc.) só funciona naquela frase. Outras vezes, porém, é um mero efeito retórico do autor, que poderia vir em qualquer outro trecho; um efeito estilístico usado para reforçar a voz-narrativa-geral daquele livro, e não uma frase específica. Desse modo, usar um efeito semelhante algumas linhas depois preserva a intenção do autor, revela o tipo de recurso que ele emprega ao escrever. 
 
Perde-se aqui, recupera-se acolá – é uma tática permanente ao traduzir. Em grande parte dos textos literários, frases são como pinceladas de tinta num quadro de grandes dimensões: não estão ali para ser avaliadas com régua e microscópio, estão apenas contribuindo para uma visão geral, distanciada, um efeito de conjunto. 
 
Se um autor recorre o tempo todo, digamos, a aliterações, repetição de sons parecidos, séries de palavras com as mesmas iniciais ou as mesmas sílabas em outra ordem, é preciso ter isto em mente e reproduzir esse efeito, mesmo que não seja nas mesmas frases em que ele aparece no original. O ideal é que seja na mesma frase, mas às vezes as palavras em português não cumprem esse requisito. Neste caso, que as aliterações apareçam em algum momento próximo, quando o vocabulário de língua de chegada (o português) o favorecer. 
 
Em casos assim, não se trata de um ganho propriamente, e sim da recuperação de algo que foi perdido um pouco antes. Como se o tradutor dissesse: “É assim que o autor escreve.” 
 
Existem os ganhos involuntários, por certo. Há um filme inglês cujo título original é There’s a Girl in My Soup (filme de Roy Boulting, peça teatral de Terence Frisby). Traduzido ao pé da letra, vira Tem uma Moça na Minha Sopa – sugerindo o trocadilho com “tem uma mosca na minha sopa”, inexistente no original. A coincidência de sons em português (moça/mosca) não existe em inglês (girl/fly). É um ganho involuntário. 
 
 
 
 









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