O poeta Fernando Pessoa morreu em 1935, aos quarenta e
sete anos, consumido pela solidão, o cigarro, a bebida e sabe-se lá mais o quê.
Era um indivíduo intenso e arredio, embora tivesse cultivado amizades sólidas
que duraram por toda sua vida adulta.
Nunca se casou, embora tenha mantido uma espécie de namoro
platônico com uma prima, Ofélia, que provavelmente lhe inspirou o famoso verso
dizendo que “todas as cartas de amor são
ridículas”.
Pessoa deixou como herdeiros dois sobrinhos, parentes
distantes a quem se juntaram seus amigos mais fiéis para administrar o espólio
após sua partida – principalmente o famoso e inesgotável baú onde se
encontravam, talvez, 90% de sua obra conhecida atualmente.
Pessoa publicou pouco em vida. O único livro que publicou
com seu nome foi o justamente famoso Mensagem.
Os poemas que atribuiu aos seus “heterônimos”, poetas imaginários que ele
usava para adotar diferentes atitudes e mentalidades poéticas, foram publicados
aqui e ali durante sua vida. Os heterônimos eram um artifício conhecido de seus
amigos mais próximos, mas nas décadas seguintes a sua morte tomaram o mundo de
assalto.
Sua biblioteca pessoal foi recentemente colocada à
disposição dos leitores, pela Internet, num portal que enumera todos os livros
encontrados em seu poder quando de sua morte, e tem imagens digitalizadas de
páginas anotadas, comentadas, com dedicatórias, etc.
São ao todo 1.312 títulos num total de 1.419 volumes,
divididos em dez classes:
Anos atrás comentei aqui no Mundo Fantasmo a biblioteca
deixada por Guimarães Rosa, quando morreu em 1967.
Aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2011/01/2453-biblioteca-de-j-g-rosa-1412011.html
Tenho uma curiosidade especial para saber o que liam e o
que mantinham consigo esses escritores que admiro. Em parte por interesse histórico,
vontade de avaliar (mesmo indiretamente, com indícios circunstanciais) possíveis
fontes ou influências literárias. Com cautela, é claro. A presença de um livro
numa biblioteca não prova que o livro foi lido; no máximo revela algum
interesse por parte do dono da biblioteca. E nem tudo que lemos (ou que
possuímos) nos influencia.
Correr os olhos por uma lista assim serve também para nos
surpreender. Por melhor que conheçamos o que alguém escreveu não é a mesma
coisa ficar sabendo o que essa pessoa costumava ler.
A biblioteca de Pessoa pode ser acessada aqui:
https://bibliotecaparticular.casafernandopessoa.pt/index/index.htm
Pessoa tinha temperamento místico, ritualístico, e uma
fascinação pelo simbolismo iniciático das sociedades secretas. Na Classe 0,
“Generalidades”, de sua biblioteca, há numerosos livros sobre a Maçonaria e a Fraternidade
Rosa-Cruz, interesses permanentes do poeta ao longo de sua vida.
Por outro lado, tinha um interesse real pela ciência de
sua época nessa mesma seção vê-se um livro de H. G. Wells: Anticipations of the reaction of mechanical and scientific progress
upon human life and thought (1914). Eu tinha curiosidade em saber se Pessoa
era leitor de ficção científica, não a FC das revistas populares (embora ele
fosse fluente no inglês, idioma que aprendeu muito cedo na África do Sul, onde
passou parte de sua infância) mas alguma coisa do chamado “scientific romance”
europeu, ao qual ele certamente tinha acesso.
E o nome que brotou nas listas da biblioteca foi
justamente o de H. G. Wells, que durante o tempo de vida de Pessoa estava no
auge de sua popularidade. Nas primeiras décadas do séulo 20, Wells era um autor
prolífico, bem-falante, viajava pelo mundo, envolvia-se em polêmicas, era
recebido por chefes de Estado. Foi o autor de FC com maior status politico
internacional, rivalizado tempos depois por Arthur C. Clarke.
E na
Classe 8 da biblioteca pessoana encontram-se obras suas como First and Last Things , The invisible man, Kipps, Love and Mr. Levisham , The new Machiavelli, The sea lady, The short stories of H. G. Wells, The time machine, The Island of Dr. Moreau, Tono-Bungay, The wheels of
chance, e When the sleeper wakes.
Note-se que não são todos romances de FC – porque Wells, tipicamente para
sua época, escrevia em todos os gêneros, sem fazer distinção autoral entre
eles.
Em termos da literatura hoje considerada “de gênero” (FC,
policial, fantasia, etc.) os autores mais presentes na biblioteca pessoana são
Wells e o inabarcável G. K. Chesterton, outro “monstro sagrado” da literatura
da época, tanto em sucesso popular quando no respeito por parte da crítica
literária. O autor de Orthodoxy morreu
em 1936, um ano depois de Pessoa; foram rigorosamente contemporâneos (GKC alguns
anos mais velho), e na biblioteca do poeta encontra-se o seu clássico A Incredulidade do Padre Brown (1926), a
terceira das cinco coletâneas de contos com o padre-detetive.
Outras obras chestertonianas espalhadas pelas estantes do
poeta são What’s wrong with the world (1912,
na Classe 3, de Ciências Sociais), A
short history of England (1917) e a biografia George Bernard Shaw (1914), ambos na Classe 9, que inclui
“Biografia”.
A presença de todas estas obras sugere admiração,
devoção, alinhamento ideológico ou estético? Nem tanto. No poema em prosa
“Ultimatum” (1917), um dos textos fundamentais para se entender o pensamento de
Pessoa, o heterônimo “Álvaro de Campos” passa o rodo na literatura, na cultura
e na política da Europa, num dos ataques mais virulentos, mais eloquentes e
mais acidamente verbalizados que a Europa já sofreu.
“Campos” age como um iconoclasta que entra numa catedral
ou num museu, cano-de-ferro em punho, e sai reduzindo a cacos todas as imagens
que surgem na sua frente.
E diz, a certa altura:
(...)
Fora
tu, H. G. Wells, ideativo de gesso, saca-rolhas de papelão para a garrafa da
Complexidade !
Fora
tu, G. K. Chesterton, cristianismo para uso de prestidigitadores, barril de
cerveja ao pé do altar, adiposidade da dialéctica cockney com o horror
ao sabão influindo na limpeza dos raciocínios !
(…)
Pessoa afirmava fazer poesia dramática, falando em nome de
personagens que tirava da própria imaginação. E é curioso que, ao voltar sua
metralhadora verbal contra a literatura européia, ele coloque assim, lado a
lado, juntinhos, dois dos escritores mais bem representados em suas estantes. Dois
dos seus mais fiéis companheiros de café, cigarro e madruga.
Uma relação um tanto obscura na biografia de Pessoa é a
que ele manteve com o mago Aleister Crowley, uma das personagens mais peculiares
daqueles tempos. Crowley já foi descrito como uma mistura de Thomas Green
Morton e o Conde de Cagliostro. Apelidado “a Besta do Apocalipse”, era um
sujeito de personalidade forte, inteligente, carismático, sem escrúpulos, que
alegava ter poderes paranormais e ser bem relacionado no mundo dos deuses e dos
demônios.
Fernando Pessoa tinha interesse pela magia ritual, e além
disso Crowley era um dos personagens mais polêmicos na imprensa da época. O
poeta tinha entre seus livros o 777 (1909)
de Crowley, a biografia The Legend of
Aleister Crowley (1930) de P. R. Stephensen, e a autobiografia (que alguns
chamam “auto-hagiografia”) The
Confessions of Aleister Crowley (1929).
Estes dois últimos livros surgem na mesma época do
misterioso encontro presencial de setembro de 1930 entre Pessoa e Crowley, na
“Boca do Inferno”, em Cascais, quando o poeta ajudou o bruxo inglês a forjar o
seu próprio desaparecimento, um episódio bizarro que nunca entendi direito e sobre
o qual leria de bom grado um livro inteiro.
Há algum material a respeito neste documento:
https://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/pessoaplural/Issue1/PDF/I1A08.pdf
Pessoa lia biografias de Oscar Wilde, Lord Byron, Percy Shelley.
Há um pequeno volume, The Poe cottage at
Fordham (1922, Reginald Pelham Bolton) que tem como foco a casinha
novaiorquina onde Edgar Allan Poe viveu alguns momentos de felicidade efêmera
com sua prima-esposa Virginia Clemm. Fiquei curioso quanto ao teor de The
mental condition and career of Jesus of Nazareth (1904, Henry Leffman) e
também de Lives of the necromancers or an
account of the most eminent persons in successive ages who have claimed for
themselves or to whom has been imputed by others the exercise of magical power (William Godwin, 1876).
Na Classe 1 da biblioteca, que envolve filosofia e
psicologia, surge um título curioso sobre a sexualidade de Walt Whitman: Walt Whitman’s Anomaly (1913), de W. C.
Rivers. Whitman é uma das grandes fontes de inspiração para os poemas de
“Álvaro de Campos”. Seu tratamento poético do tema da homossexualidade causou
escândalo na época, e é um viés presente na poesia de Álvaro de Campos, o
“autor” de obras como “Tabacaria” e o “Poema em Linha Reta”.
O interesse científico de
Pessoa está mais manifesto na Classe 5, nas obras sobre “Matemáticas e Ciências
Naturais”. Ali se encontram, ao lado de vários livros sobre Teoria da Evolução
e o Darwinismo, obras sobre a Teoria da Relatividade: The Theory of Relativity (Henry L. Brose, 1920), Einstein (Alembert, 1923), Initiation aux théories d’Einstein (A.
Berget, Gaston Moch, 1922), Relativity (William
Rose, James Rice, 1927).
São obras do momento, do quente da batalha, como se diz
por aí. Obras da época em que Einstein, depois de muitos anos de luta, começava
a impor à comunidade científica sua visão do Universo, da matéria, do espaço e
do tempo (ele recebeu o Prêmio Nobel em 1922). Pessoa acompanhou, mesmo que o
tenha feito superficialmente, essa batalha.
E quanto à literatura de gênero, registro na Classe 9,
literatura, o testemunho do amor irrestrito de Pessoa pelo conto detetivesco,
ou “conto de raciocínio”, como ele os chamava. Conto e romance, é claro. A
biblioteca preserva algumas revistas de contos policiais como All Detective Magazine (1934), Detective (1940) em meio a outras
revistas literárias em geral. E
ali estão títulos de autores clássicos daquele período, como Trent’s Last Case (E. C. Bentley), The Vane mystery (Anthony Berkeley), His Last Bow (Conan Doyle), Raffles (E. W. Hornung), The Old Man in the Corner (Baronesa de
Orczy), The mystery lamp (Mary R.
Rinehart) e John Silence (Algernon
Blackwood).
Pessoa reafirmou em várias ocasiões o seu gosto pela
literatura policial-detetivesca, e chegou a praticá-la de forma fragmentária.
Veja aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2023/02/4912-o-detetive-fernando-pessoa-1222023.html
Pessoa era leitor de Edgar Wallace, talvez o mais célebre
autor de romances policiais daquela época. Não vi nenhum livro dele na
biblioteca pessoana, o que nada prova; mas posso encerrar com esta observação
arguta do poeta:
A concisão e a captação do interesse do leitor, requeridas nas estórias
detetivescas, não são menos requeridas em todas as literaturas. Nada se ganha
com fatigar o leitor. Edgar Wallace é mais interessante do que Walter Scott,
mas Edgar Wallace não é mais interessante do que Shakespeare. Há um Edgar
Wallace em Shakespeare.
(Fernando Pessoa, Obras em Prosa, Ed. Nova Aguilar, 1986,
p. 490)
(Fernando Pessoa, 1928)
Esta é a famosa foto: "flagrante de litro"
ResponderExcluirInteressante e ou curioso
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