sábado, 3 de agosto de 2024

5088) Leituras 2024 - parte 2

 
Em geral faço no fim do ano estes pequenos balanços de minhas leituras, mas desta vez vou fazer diferente. Até porque quando chega dezembro tenho dificuldade para evocar detalhes de livros lidos nos primeiros meses... Enfim, vai ser desse jeito. 
 


“Um estranho tão familiar” de George Amaral (São Paulo: Bandeirola, 2023)

Dentro dos estudos sobre literatura fantástica, este ensaio de George Amaral usa o conceito de “estranheza” para comparar as estratégias narrativas de diferentes gêneros literários. Em capítulos claros e bem argumentados, vemos a “ostranenie” dos formalistas russos, o “distanciamento brechtiano” no teatro, o “uncanny” (“Unheimlich”) estudado por Freud, o “estranhamento cognitivo” com que Darko Suvin definiu a ficção científica... Em todas essas formas, a tentativa de “acordar” o leitor/espectador de sua modorra mental, fazê-lo ver algo familiar como se o estivesse vendo pela primeira vez, fazê-lo perceber, por uma nova contextualização (que no caso da FC pode envolver mudanças bruscas no Tempo e no Espaço) a verdadeira dinâmica dos fatos. 



 “Giacomo Joyce” de James Joyce (Paris: Gallimard, 1973, trad. Yves Malartic)

Oscar Wilde dizia ser capaz de resistir a tudo, menos a uma tentação; eu não resisti quando vi na barraquinha de livros da Praça Afonso Pena esta tradução francesa da noveleta romântica de Joyce, pelo preço bastante acessível de 3 reais. “Giacomo Joyce” é uma narrativa compacta, cheia de um lirismo distanciado, com olhos de lince para detalhes do ambiente e dos gestos humanos. Foi escrita entre 1911 e 1914, antes que o autor embarcasse no gigantesco projeto do Ulisses, e conta a paixão reprimida de um autobiográfico professor de inglês, em Trieste, por sua jovem aluna judia. Mais que uma narrativa é o registro impressionista de quadros sucessivos em que o professor rumina consigo mesmo seu encantamento pela “flor inodora” com quem convive. “Giacomo Joyce” já foi traduzido no Brasil por Paulo Leminski (Ed. Brasiliense, 1985) e por José Antonio Arantes (“Folhetim”, Folha de S. Paulo, 10-6-1984). É um pequeno camafeu, comparado à catedral do Ulisses, cheio de delicadas belezas e de surpresas intrigantes. 



“Riacho escuro” de Marta Pessoa (Sete Autores, 2024)

A literatura sertaneja se confunde às vezes com o gênero das “sagas familiares”, que se pratica em todos os continentes. Histórias de uma família ao longo de décadas e gerações; às vezes ao longo de séculos. Marta Pessoa (“Zignau”, “É Tempo de Cuidar”) é sertaneja e conhece de perto o peso desses vínculos de sangue, cartório, terras, lealdades, paixões e ódios. “Riacho Escuro”, seu primeiro romance, começa com o desaparecimento do filho de um fazendeiro e vai entrelaçando, ano após ano, uma rede de intrigas, vinganças, segredos e revelações. A prosa é segura e precisa, a ambientação é fiel sem carregar nas tintas do “nordestinismo”. Alguns dos segredos revelados são cruéis, mas como diria algum personagem, cruel é a vida. 



“Memorial do Esqueleto e Outros Contos” de Aldo Lopes de Araújo (Natal: Offset / Sebo Vermelho, 2024)

Aldo Lopes é contista e romancista no mesmo tecido e no mesmo corte. Igualmente à vontade na ambientação urbana e na rural, no realismo lógico e no realismo mágico, ele faz do Sertão um terreno fértil para o insólito, o grotesco, o brutal. Neste seu mais recente volume de contos, ele remexe no baú-sem-fundo das histórias de assombrações, superstições, maldições de família, onde reescreve episódios incrustados em nossa memória cultural, desde Machado de Assis (“Uns braços”) à Bíblia (“Estátuas de Sal”, “Adeus, Deus”). “A maldição de Princeza” é um gótico sertanejo arrepiante; “Memorial do Esqueleto” traz uma versão meio fescenina da lenda do homem que vende o próprio esqueleto antes de morrer. Duas histórias curtas têm uma concisão e um peso verbal admiráveis: a que abre o livro (“O gancho do teu braço em meu pescoço”) e o que o encerra (“Arquivos dos portais”). 



“Se um Viajante numa Noite de Inverno”, de Ítalo Calvino (1979; Círculo do Livro, s/data, trad. Margarida Salomão)

Este é um livro que sozinho rende um ano de Mundo Fantasmo, e certamente voltarei a ele no futuro. Calvino é um fabulador, bom contador de histórias, e consegue fazer um livro cheio de conceituações sobre o ato de escrever sem torná-lo um livro chato. Aqui, ele realiza seu sonho confesso de fazer um livro só feito de começos de livros. Um casal de leitores se depara com um livro misterioso cujo meio-e-fim estão sempre faltando, e cada vez que adquirem uma cópia se deparam com o “começo” de um novo livro, que também não acaba. Calvino discute fake news (sem usar esse termo – o livro é de 1979), literatura eletrônica, tradução, picaretagens editoriais, idiomas em desaparecimento, a arte da narrativa... Um livro para passar a vida relendo. 



“Traduzir-me”, de João Batista de Brito e Sérgio de Castro Pinto (João Pessoa: Idéia, 2024)

Este volume feito a quatro mãos é uma aventura tradutória de João Batista de Brito, crítico de cinema com respeitável carreira e vários livros publicados. Ele fez uma seleção de poemas de Sérgio de Castro Pinto, outro nome indiscutível nas letras paraibanas, e os verteu para o inglês. Os versos de Sérgio, curtos, sintéticos, extremamente concisos, parecem à primeira vista fáceis de traduzir.  Ledo engano, diz João Batista, porque o jogo de polissemias, que é uma das marcas características do poeta se esvai o tempo inteiro na tradução, onde dificilmente se pode encontrar uma palavra que contenha em si as mesmas duas faces. Ainda assim, o tradutor encontra caminhos e produz versões agudas, sólidas. Falei que era um livro a quatro mãos mas poderia dizer seis, porque um terceiro amigo se faz presente, o artista Flávio Tavares, com uma série de desenhos inspirados (não sei se todos) nos poemas escolhidos. O jornalista e poeta Astier Basílio assina o prefácio, o que torna este pequeno volume um instantâneo da cultura da Paraíba neste começo de século.  



“A exumação do corpo de Maria Saraiva de Araújo – Tramas e intrigas na Vila Nova de Pombal do século XVIII” de Jerdivan Nóbrega de Araújo (João Pessoa: Idéia, 2024)

A cidade de Pombal é, na Paraíba, uma das que têm sua história, memória e cultura mais bem documentadas, graças a um punhado de historiadores e memorialistas como Jerdivan Nóbrega de Araújo, José Tavares de Araújo e Werneck Abrantes. Em parceria ou isoladamente eles vêm cobrindo sem cansaço o passado histórico da cidade, seja numa visão geral da evolução desta, seja no registro de fatos e vultos específicos. “A exumação...” é o relato fascinante de um possível crime ocorrido em 1784, com a morte de Maria Saraiva, esposa do capitão-mor Francisco de Arruda Câmara, um potentado local com muito poder e numerosos inimigos. Depois de sepultada a defunta, brotaram boatos de que ela teria sido envenenada pelo marido, o que deu motivo para um inquérito, a convocação de dezenas de testemunhas e a exumação do corpo da suposta vítima. A reconstituição minuciosa feita por Jerdivan Nóbrega se apoia na transcrição de documentos da época e na comparação de fatos e depoimentos para extrair uma versão plausível dessa morte misteriosa, que já tem quase dois séculos e meio. É uma mistura de reportagem de crime real  e reconstituição histórica, mais um episódio fascinante (às vezes brutal) e bem documentado do passado da cidade sertaneja. 

 

 

 



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