Uma das minhas atividades profissionais no momento é
ministrar cursos de literatura, online, geralmente através do Instituto Estação
das Letras, do Rio de Janeiro. A vantagem do curso online (além da comodidade
de estar todo mundo em sua própria casa) é que atinge alunos do Brasil inteiro,
e até de fora, já que não é presencial.
O próximo curso começa amanhã, 16 de julho, e vai constar
de quatro aulas, todas as terças-feiras (de 16 de julho a 6 de agosto), das 19
às 21:00. Maiores informações, sobre
preços, inscrições, etc., no telefone do I.E.L. (21) 99127-4088.
Vale sempre lembrar que, no curso online, mesmo que o
aluno não possa assistir à aula em tempo real ele tem acesso a uma gravação.
O que são as ficções do espaço e do tempo?
São, em primeiro lugar, as histórias que abordam espaços
e tempos mais amplos (e mais especulativos) do que os que encontramos na vida
real, e isto as conduz geralmente na direção do fantástico.
Um aspecto interessante de tais histórias é que uma parte
enorme delas consiste em “histórias de aventuras”, histórias que envolvem
aquilo que geralmente chamamos de “a jornada do herói”. Tenho observado por aí
que nos cursos de roteiro, de escrita criativa, etc., a “Jornada do Herói” é
proposta como modelo para qualquer narrativa. É uma fórmula – que depende, em
grande parte, das descobertas e teorias de Joseph Campbell – com um
protagonista central envolvido numa demanda em grande escala, uma missão que
irá exigir dele coragem, determinação, engenhosidade, etc. para poder alcançar
seu objetivo.
A Jornada do Herói é uma aventura, e este aspecto
independe do gênero literário da história. Pode ser uma aventura de ficção
científica, uma aventura de fantasia, uma aventura na vida corporativa, uma
aventura de cowboys e índios, uma aventura de piratas, uma aventura de
espionagem... Uma aventura é sempre uma jornada num espaço desconhecido e num
tempo desconhecido – “tempo” entendido aí como uma situação cheia de
imprevistos, em que é impossível ter certeza sobre o futuro. Aquelas situações
na vida em que tudo pode acontecer, para o melhor ou para o pior.
Grande parte da literatura popular se baseia nesse tipo
de missão e nesse tipo de incerteza.
Todo protagonista de uma narrativa é um herói? De jeito
nenhum. Acho que o conceito de “herói” está se banalizando demais hoje em dia,
principalmente devido ao excesso de uso no cinema, nas séries de TV, nas
histórias em quadrinhos... Gosto de histórias de heróis, como todo mundo; mas o
seu uso repetitivo e pouco inovador faz com que elas se tornem apenas um canal
para fantasias narcisistas em que o “Eu” do leitor compensa suas frustrações e
suas impotências na vida diária.
Como já disse um crítico, Superman jamais faria sucesso
se todo leitor não fosse um simples Clark Kent.
Um outro aspecto dessas ficções aventurescas é que elas
criaram ao longo dos séculos dois tipos de protagonistas a quem eu chamo os
“Ícaros” e os “Dédalos”, em alusão aos personagens da mitologia grega.
O que é um “Ícaro”? É alguém que se lança numa aventura
sem ter medo do que lhe possa acontecer, e muitas vezes se dá mal por
subestimar o perigo da morte, mas mesmo assim tem uma morte gloriosa. Ícaro
pregou com cera suas asas artificiais, e ao voar aproximou-se do sol, de forma
temerária. O sol derreteu a cera e ele morreu caindo no abismo. O aventureiro
sempre sabe que corre esse risco, mas é da sua natureza encarar o perigo pela
sedução da aventura.
(Albrecht Durer, "Icarus and Dedalus")
Já o “Dédalo” se inspira no seu pai, o construtor do
labirinto de Creta. E esse tipo de personagem sugere outro viés da literatura:
o indivíduo que mergulha em aventuras mentais, em vez de aventuras físicas. Um
dédalo é alguém capaz de construir um labirinto, ou de decifrar um labirinto
construído por outra pessoa. Um detetive, por exemplo, é um dédalo: alguém que
penetra no labirinto misterioso de crimes e de pistas que são incompreensíveis
para todos, mas é capaz de interpretar corretamente o que vê, e de encontrar o
caminho no labirinto, e enfrentar o monstro (=o criminoso).
Na narrativa policial, James Bond é um ícaro, e Sherlock
Holmes é um dédalo.
Esses arquétipos vêm de longa data, desde a antiguidade.
Hércules era um ícaro, Édipo era um dédalo (quando decifrou o enigma da Esfinge).
Data também da antiguidade um outro aspecto dessas
“ficções do espaço e do tempo”: a antevisão de sociedades perfeitas, sociedades
organizadas de acordo com algum princípio básico de ordem, progresso, limpeza,
otimização do trabalho e das oportunidades, etc. Em outra palavra: uma Utopia.
O mais interessante é que toda Utopia é também uma
Distopia. Toda sociedade perfeita é também uma sociedade asfixiante e
autoritária para qualquer um que não se enquadre nas suas leis e nas suas
obrigações. Utopia e Distopia, que são geralmente usadas como antônimos, em
última análise são sinônimos, porque é impossível a existência de uma sociedade
perfeita para todos. A não ser que todos os habitantes pensem igual – e pode
haver algo mais distópico do que isto?!
Com isto em mente, vamos dar uma passada nos argumentos
de algumas utopias/distopias de autores brasileiros como Rodolfo Teófilo,
Godofredo Barnsley, Emilia Freitas, Gulherme de Figueiredo, Manotti del
Picchia, etc.
Essas sociedades imaginárias situam-se em espaços e
tempos muito afastados dos nossos, e servem como espelhos deformados não apenas
da sociedade em que vivemos concretamente, mas também daquilo que consideramos
uma organização ideal da vida coletiva. O que era utopia em 1900 não o é hoje,
e o que pensamos ser utopia hoje não pensaríamos no ano 2124.
Existe um outro tipo de espaço e tempo, contudo, e aí
vamos numa direção totalmente diversa. O grande J. G. Ballard (autor de Crash, O Império do Sol, etc.) foi um dos autores britânicos que a partir
da década de 1960 começaram a pregar, para a ficção científica, a necessidade
de deixar um pouco de lado o “espaço exterior” (a Luz, Marte, o Sistema Solar,
a Via Láctea...) e concentrar-se no “espaço interior” (“Inner space”).
Dizia Ballard que o território especulativo ideal para a
literatura de hoje (e não só a ficção científica) era a mente humana,
individual e coletiva. A nossa relação com o inconsciente, com os instintos
animais que nos controlam mais do que admitimos. A obra de Ballard é uma boa
ilustração desse princípio – o melhor exemplo é Crash (filmado por David Cronenberg), abordando um grupo de pessoas
que se excitam sexualmente ao presenciar ou imaginar colisões de automóveis e
suas consequências nos corpos das pessoas.
Outro aspecto do “espaço interior” que a literatura (e
não só a FC, insisto!) tem abordado de forma criativa são os estímulos
artificiais da mente, seja através de drogas, seja através conexões
eletrônicas, etc. A chamada literatura cyberpunk explodiu por volta de 1984,
ano em que William Gibson publicou o Neuromancer;
dali para cá, entraram em nosso vocabulário palavras como ciberespaço,
realidade virtual, realidade aumentada (“augmented reality”), Inteligência
Artificial.
Também podem ser examinadas por este ângulo as obras que
mostram como o espaço interior, o nosso espaço mental/perceptivo, é construído
de fora para dentro e de dentro para fora com o uso das tecnologias
tradicionais de comunicação: a arquitetura, a propaganda, a fotografia, a
televisão, o design, etc.
Autores de FC propuseram anos atrás o termo Media Landscape (“paisagem da mídia”) para
descrever esse meio onde circulamos: eu traduzo esse termo em português como Mìdia Ambiente, para distingui-lo do
“meio ambiente” natural. A Mídia Ambiente é esse conjunto de estímulos
produzidos pela Cultura humana (e não pela Natureza), capaz de nos mergulhar
numa paisagem que pode se tornar hostil, acolhedora, insidiosa, autoritária,
infantilizadora, sedutora. Uma paisagem artificial, exaustivamente discutida e
planejada em gabinetes, como estratégia de controle social permanente.
Todos estes aspectos têm sido explorados na literatura, e
não apenas na ficção científica. Basta dar uma passada-de-vista na obra de
Thomas Pynchon, Italo Calvino, David Foster Wallace, Haruki Murakami, Don
DeLillo, Michael Chabon, Kazuo Ishiguro, David Mitchell... Escritores que
compartilham essa consciência do inevitável convívio entre Mente, Corpo e Máquina.
Poucos escritores “mainstream” têm explorado o espaço e o
tempo com a insistência e a profundidade de Jorge Luís Borges. “Funes, o
Memorioso”, ao contar a história de um rapaz que tem memória total, mostra como
a percepção que a mente humana tem do tempo depende de sua capacidade de
lembrar e esquecer: nele, a recordação total do passado requer a eliminação do
presente, por ocupar totalmente os minutos (ou horas) que dura a evocação. Em
“O Milagre Secreto”, um homem consegue suspender a passagem do tempo (enquanto
sua mente não pára, continua pensando) para concluir uma obra literária. Em
“Utopia de um Homem Cansado” o protagonista viaja mentalmente para o futuro e
de lá faz um balanço satírico do nosso tempo atual.
A literatura de imaginação surgiu com as lendas e os
mitos da Antiguidade, as narrativas cosmogônicas dos indígenas do mundo
inteiro, as mil e uma formas da fantasia desenvolvidas na Idade Média e no
Renascimento europeu, chegando modernamente até o “Scientific Romance” da
Europa no século 19 e a pulp fiction
norte-americana que floresceu na primeira metade do século 20.
Meio “escanteada” pelos críticos, essa
literatura-imaginativa, nas formas populares (folhetins de jornal, revistas,
livros de bolso) era lida e admirada por esses autores que enumerei algumas
linhas mais acima, autores que souberam assimilar sua ousadia imaginativa e
dar-lhe um tratamento fabulatório à altura.
São as Ficções do Espaço e do Tempo, e são um dos núcleos
essenciais da literatura deste século que mal começou.
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