Vi alguns filmes de Godzilla quando era adolescente, e eles sempre me divertiram muito. Os efeitos especiais eram toscos? Nunca liguei para isso. Não estou ali para imaginar que algo é real, mas para ver como o não-real se comporta. Minha suspensão-da-descrença está sempre pronta, a um estalar dos dedos.
(20 million miles to Earth, Nathan Juran, 1957)
Para além de sua alegoria científica e militaresca, filmes como os da série Godzilla têm também uma dimensão místico-religiosa que fica aflorando aqui e ali.
O monstro não é mau, ele é apenas selvagem, bruto. Uma força
da Natureza que foi desencadeada pela imprudência humana, e que agora reage –
reage como até um animal doméstico reagiria ao ser maltratado. É feroz e é
incompreensível, por mais que a gente queira compará-lo a uma fera raivosa.
Quando encontramos traços humanos no monstro, conseguimos
nos compadecer dele, e talvez o melhor exemplo disto seja King Kong. Com diferentes
nuances em cada versão; mas sempre um monstro em que podemos projetar emoções
semelhantes às nossas.
Godzilla nem tanto, mas me chamou a atenção um comentário
feito pelo diretor Yamazaki, nas entrevistas. Ele diz que na cultura japonesa
existe o conceito do tatarigami,
“espíritos que trazem consigo as calamidades”. Godzilla, para o diretor, é
metade-monstro e metade-deus. Uma divindade brutal e destrutiva, mas que traz
em si algo de sagrado.
O que me trouxe à mente um conto de Ted Chiang, “O
Inferno é a Ausência de Deus”, em sua coletânea Stories of Your Life and Others,
2002 (no Brasil, História da sua vida
e outros contos, Ed. Intrínseca, 2016, trad. Edmundo Barreiros).
O conto de Chiang não é propriamente ficção científica,
embora tenha ganho naquele ano os principais prêmios deste gênero (o Hugo, o
Nebula e o Locus, além de outros). É uma ficção religiosa, imaginando um mundo
em que existe Deus, existem o Paraíso e o Inferno, tudo parecido com o que dizem
os livros sagrados.
E nesse mundo acontecem o que eles chamam de “Visitações”
dos Anjos. São breves momentos em que os Anjos surgem em nosso mundo material, emergindo
do Além. Essas Visitações, contudo, ficam mergulhadas em mistério, porque os
Anjos não se dirigem às pessoas: nada lhes dizem, nada lhes revelam. Surgem, e
desaparecem. E cada Visitação é uma pequena catástrofe, como se fosse uma chuva
de raios misturada a um terremoto.
Cada visitação produz milagres – milagres paradoxais,
imprevisíveis, inexplicáveis. Uma pessoa é curada do câncer. Um menino morre
queimado no incêndio provocado pelos raios. Uma mulher que nasceu sem pernas
adquire pernas, instantaneamente. Outra mulher é dilacerada por cacos de vidro
na explosão de uma vidraça, e tem morte horrível. Outro homem perde os olhos,
que desaparecem do seu rosto.
Os efeitos dessas Visitações fugazes e assombrosas ficam
sendo discutidos durante anos pelos fiéis, em grupos de estudo onde eles se dão
apoio mutuamente e procuram entender o propósito do que lhes aconteceu. Nunca
se sabe onde e quando as Visitações vão ocorrer, nem que consequências terão.
Para além de sua alegoria científica e militaresca, filmes como os da série Godzilla têm também uma dimensão místico-religiosa que fica aflorando aqui e ali.
O
fenômeno assemelha-se aos mistérios encontrados pelos personagens de Piquenique na Estrada (“Roadside
Picnic”, Arkádi e Bóris Strugátski; filmado por Andrei Tarkóvski como Stalker), onde um passo em falso pode
provocar acidentes meio absurdos, mas fatais.
Nessas narrativas, o contato com o Sobrenatural Divino e
com o Extraterrestre Inacessível se assemelham. Sabemos que algum prodígio aconteceu,
e produziu resultados espantosos, mas não entendemos a razão daquilo, não
sabemos o como e o para quê desses eventos milagrosos, que para uns é redenção
e para outros é tragédia.
A noveleta de Ted Chiang é complexa, contraditória, e não
deixa de trazer à lembrança o início da primeira das Elegias de Duino (1923) de Rainer Maria Rilke:
Quem, se eu gritasse, me escutaria, entre as hierarquiasdos anjos? E mesmo que um deles de súbitome apertasse contra seu peito, eu pereceriaao contato de sua existência tão mais forte.Pois a beleza não é senão o princípio do terrorque mal somos capazes de aguentar, e que nos espantaporque calmamente desdenha de nos aniquilar.Todo anjo é medonho. (...)(trad. BT)
Muito bom!!!
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