sexta-feira, 24 de maio de 2024

5065) Bob Dylan, ano 83 (24.5.2024)



(Bob Dylan, na sua oficina de esculturas em metal) 

 
Trechos do livro de memórias Chronicles, vol. 1 (2004), de Bob Dylan, que hoje completa 83 anos. Trad. BT 
 
(Sobre a infância:)
“Programas de rádio formaram uma grande parte da minha consciência lá no Meio-Oeste, quando eu tinha a sensação de viver numa perpétua juventude. Inner Sanctum, The Lone Ranger, This Is Your FBI, Fibber McGee and Molly, The Fat Man, The Shadow, SuspenseEste último tinha o som de uma porta rangendo, mais horrível do que qualquer porta que você possa imaginar; histórias de estraçalhar os nervos e dar voltas no estômago, toda semana. (...) Uma vez eu perguntei ao cara da sonoplastia como ele recriava o som de uma cadeira elétrica, e ele disse que era fritando bacon. E ossos quebrados? Ele pegou um drops e partiu com os dentes.” (p. 50-51) 
 
(Sobre os anos 1960:)
“Os artistas latinos também estavam rompendo com as fórmulas tradicionais. Artistas como João Gilberto, Roberto Menescal e Carlos Lyra estavam se afastando do samba recheado de tambores e criando uma nova forma de música brasileira cheia de mudanças melódicas. Deram-lhe o nome de bossa nova. Quanto a mim, o que eu fiz para romper com a fórmula foi pegar as harmonias da música folk e colocar nelas um novo imaginário e uma nova atitude, usar bordões e metáforas combinados com um novo conjunto de regras que acabaram evoluindo para formar algo novo, algo que não tinha sido ouvido antes.” (p. 67) 




(Sobre os testes antes de gravar o primeiro disco:)
“Eu não tinha muitas canções, mas estava compondo algumas meio de improviso, refazendo versos para velhas baladas, velhos blues, criando um verso original aqui e ali, do jeito que vinha na minha cabeça – e botando um título novo. Estava fazendo o melhor que podia, precisava sentir que estava merecendo o dinheiro que me pagavam. Nada era capaz de me convencer de que eu era um compositor de verdade, e não era mesmo, não no sentido convencional da palavra.” (p. 227) 
 
(Sobre os primeiros tempos em Nova York, aos 20 anos:)
“Eu não sabia exatamente o que estava procurando, mas comecei a procurar na Biblioteca Pública de Nova York. (...) Numa sala de leitura dos andares superiores comecei a ler, em microfilme, artigos dos jornais  de 1855 a 1865 para saber como era a vida naquele tempo. Não estava propriamente interessado nas questões, mas na linguagem e na retórica da época. (...) Não parecia outro mundo; era o mesmo, só que com mais urgência, e a escravidão não era o único problema. Havia matérias sobre movimentos reformistas, ligas anti-jogo, aumento na criminalidade, trabalho infantil, campanhas anti-álcool, fábricas com trabalho semi-escravo, cultos religiosos. Você tinha a sensação de que o jornal ia explodir, e que ia cair do céu um raio para fulminar o mundo inteiro.”  (p. 84) 



 
“Escrever canções para uma peça não me parecia nada de excepcional, e eu já tinha composto uma ou duas canções para ele [Archibald MacLeish] somente para ver se era mesmo capaz. Sempre gostei do palco, e mais ainda de teatro. Me parecia ser a arte suprema entre as artes. Fosse qual fosse o ambiente da ação, um bar, uma calçada, a poeira de uma estrada no campo, a ação sempre transcorria num eterno agora.” (p. 124) 



(Bob Dylan, quadro da série "New Orleans") 

 
(Sobre New Orleans, onde gravou “Oh Mercy” em 1989:)
“Em  New Orleans a gente quase consegue enxergar outras dimensões. Aqui, tudo existe apenas um dia de cada vez, depois vem a noite, e amanhã tudo vai ser “hoje” novamente. Há uma melancolia crônica pendendo das árvores. A gente nunca se cansa dela. Depois de um certo tempo, a gente se sente como um fantasma a mais daqueles cemitérios, como se estivesse num museu de cera cercado de nuvens carmesim. Um império dos espíritos. Um império dos poderosos. (...) O diabo vem até aqui e dá um suspiro. New Orleans. Estranha, anacrônica. Um bom lugar para viver sentindo as emoções alheias. Nada faz muita diferença e você nunca sofre, e é um bom lugar para deixar que as coisas aconteçam. Alguém põe um copo à sua frente, e a melhor coisa a fazer é bebê-lo.” (p. 181) 
 
(Sobre escutar Robert Johnson no Village, anos 1960:)
“Segurei o disco de acetato de Robert Johnson e perguntei a Dave Van Ronk se já o tinha escutado. Ele disse que não, e pus o disco na vitrola. No instante em que as primeiras notas brotaram do alto-falante senti meus pelos se arrepiarem. As notas do violão eram como punhaladas, capazes de partir as vidraças. Quando Johnson começou a cantar, parecia um cara que tivesse brotado da cabeça de Zeus, vestindo uma armadura completa. Senti que ele era diferente de tudo que eu já tinha escutado. As canções não eram os mesmos blues costumeiros. Eram peças perfeitas – cada canção tinha quatro ou cinco estrofes, cada par de versos se relacionava com os outros, mas nunca de uma maneira óbvia. Era algo totalmente fluido. No começo tudo surgia rápido demais, mal dava para assimilar. Ele cobria todo o território, em alcance e em variedade de temas, versos curtos, de alto impacto, que resultavam numa vasta narrativa panorâmica, era o fogo da raça humana se elevando daquele pedaço de plástico que girava na vitrola.” (p. 282) 



 
“O mundo moderno, um mundo maluco e complicado, me despertava pouco interesse. Não tinha relevância, não tinha peso. Não me seduzia. O que era vibrante, atual e significativo para mim eram histórias como o naufrágio do Titanic, as inundações de Galveston, John Henry partindo rochas com a marreta, John Hardy matando um homem a tiros numa ferrovia da Virginia. Tudo isto era atual, feito às claras, aos olhos de todos. Estas eram as notícias que eu levava em conta, acompanhava, usava para minhas anotações.” (p. 20) 
 
“Desde a infância me acostumei a ver trens, e a ouvir o seu barulho, e sempre me senti seguro. Os grandes vagões fechados, os vagões de minério, os vagões de carga, vagões de passageiros, os carros Pullman. Na minha cidade natal era impossível ir de um lugar a outro sem a certa altura ter que parar num cruzamento e ficar esperando que um longo trem terminasse de passar. As ferrovias cruzavam as estradas rurais, e às vezes as duas corriam paralelas. O som de um trem passando à distância faz com que eu me sinta em casa, me dá aquela sensação de que não há nada faltando, de que não corro nenhum perigo e que todas as coisas se encaixam.”  (p. 31) 




(Marcus Carl Franklin, no papel de Bob Dylan / Woody Guthrie, em "Não Estou Lá", de Todd Haynes)
 






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