terça-feira, 12 de março de 2024

5041) O Intranslatável (12.3.2024)



 
Alguém irá apontar com o dedo e sugerir que o título acima ficaria muito melhor como “o Intraduzível”. Não é a mesma coisa. 
 
“O intraduzível” é uma tradução linear e correta da expressão “the untranslatable”; dizendo isto, estamos traduzindo o que se pode traduzir. 
 
O intranslatável é um termo metalinguístico. Exprime, poeticamente, o resultado de nossos esforços quando somos obrigados, pela sina da profissão, a trazer para o nosso idioma uma criaturinha verbal que pula, esperneia, morde, e se recusa a entrar na gaiola.  
 
O resultado é isso aí em cima: uma palavra que não está lá nem cá, um sem-pátria a mais vagando num mediterrâneo entre o norte e o sul, entre o ocidente e o oriente.  
 
Pouco tempo atrás me caiu nas mãos uma cópia de um ótimo filme, Céleste (1980), de Percy Adlon, baseado nas memórias da criada que serviu Marcel Proust durante a última década de sua vida. Céleste Albaret (1891-1984) atuou inclusive como secretária do escritor, ajudando-o com seus manuscritos e notas. A relação terna e respeitosa que se desenvolve entre os dois é narrada com muita finura psicológica, e um uso impecável da câmera, da montagem e do som. 
 
Comentei o filme aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2024/01/5023-marcel-proust-um-planeta-distante.html
 
Só tem um problema: o filme é alemão. 



E eu passei uma hora-e-meia em sobressalto, vendo aquele apartamento cenograficamente francês, aquelas chaleiras francesas, aquelas porcelanas francesíssimas (pelo menos aos meus olhos brucutus de paraibano), aqueles bigodes, aqueles móveis... e escutando o tempo inteiro uma enxurrada de “Bitte”, “Guten Morgen”, “Entschuldigen Sie”... Me veio à mente a decepção que tive no tempo do VHS quando finalmente encontrei uma cópia de Rocco e Seus Irmãos de Luchino Visconti, e quando cheguei em casa o filme era dublado em inglês. 
 
Alguém dirá que não há problema algum. É só escutar “Guten Morgen”, imaginar que a atriz está dizendo “Bonjour”, e compreender que sua intenção é desejar “Bom dia”. 
 
Não discuto a validez desse atalho mental, até porque o pratico o tempo inteiro. Mas o fato de o filme visualmente francês ser auditivamente alemão gera um interessante problema estético. Queremos, num filme assim, mergulhar na atmosfera social e histórica de um espaço e de um tempo específicos. Queremos ser psicologicamente transportados para uma imitação aceitável do ambiente em que Marcel Proust escreveu seus livros – livros impregnadíssimos de toda uma carga francesa de significantes e significados, inextricavelmente entrelaçados àquele ambiente social. 
 
O diretor (que é alemão) errou? Deveria ter feito uma versão falada em francês? Alguns o fazem, por interesses comerciais ou mesmo estéticos. Acabei de ver, dias atrás, o Casanova de Fellini, um filme italiano, na versão falada em inglês. Mas este filme não se passa (como alega) em Veneza, em Londres ou em Wurttemberg – ele se passa no espaçotempo surreal da imaginação de Fellini, e a verossimilhança linguística está tão distante dele quanto o rigor biográfico. O filme é tudo menos realista. Se os diálogos fossem em russo ou japonês, seria a mesma coisa. 
 
É outro o caso de Céleste, quando vemos a minúcia com que o apartamento de Proust é reconstituído (ou imaginado). Talvez algum estudioso proustiano veja erros ou anacronismos, mas neste aspecto eu sou “grande público”, e não vi nenhum. Mas ouvir os ótimos atores (Eva Mattes e Jurgen Arndt) falando em alemão me dava a sensação de ver um perfeito filme-de-época (ambientado entre 1912 e 1922) com atores vestidos à moda de 2024. 




Este filme me veio justamente quando eu estava consultando uma das minhas bíblias sobre tradução, Le Ton Beau de Marot (1997) de Douglas Hofstadter. É um livro em que o autor, apaixonado por um poema singelo do francês Clément Marot,  pede a amigos dezenas de traduções, paródias, adaptações, pastiches desse poema – e os comenta, discutindo cada opção, e os motivos de cada opção. 
 
E no meio disto tudo Hofstadter discorre longamente sobre o ofício. Ele é um pouco como Isaac Asimov – um divulgador de assuntos complexos, e o faz trazendo-os para o seu dia-a-dia autobiográfico, explicando cada passo de seus raciocínios, e quando fala de tradução vai buscar exemplos na música, na pintura, no cinema, na informática... 
 
E a certa altura Hofstadter começa a se perguntar se é possível, por exemplo, traduzir nomes de lugares, ou se estes devem ser deixados no idioma original. (É o tipo da questão que em geral a gente passa por cima, mas ele pára... e questiona isso durante um capítulo inteiro.) 
 
Uma coisa que me agrada no texto de Hofstadter é que ele tem um bom humor permanente e acha engraçadíssimos certos aspectos da linguagem. No Capítulo 14, ele transcreve o trecho de um livro, Sky! My Teacher, assinado por um tal de John-Wolf Whistle (nome real: Jean-Loup Chiflet). É um livro de humor sob a forma de um manual de ensino do inglês a quem fala francês, e boa parte da graça reside na tentativa de transportar, para uma língua, algo que é essencialmente vinculado à outra. 




Ele transcreve um parágrafo que vou me poupar de traduzir, já que o objetivo é divertir anglo-parlantes que têm um mínimo conhecimento dos nomes-de-lugares parisienses.

I like Paris. The streets I prefer are the streets of the Dry-Tree, the street of the Ferry, the boulevard Good-News, the street of the Cat-who-fishes, the street of the Look-for-noon, the street Mister-the-Prince, the street of the Little Fields, and the street Old-of-the-Temple. There are some places which I like very much, like the Game of Palm, the Doormanhouse, the theatre of the Madnesses-Shepherdesses, the hospital of the Fifteen-Twenty, the Prison of Health, and the big department stores like the Beautiful Gardener, the Good Market, the Spring.
(Le Ton Beau de Marot, Basic Books, 1997, p. 432)
 
Esta amostra, para mim, é tão engraçada quanto a enxurrada de gracejos que circula no Rio de Janeiro há anos, com sugestões de placas indicativas para os turistas estrangeiros, mostrando a direção de bairros e logradouros cariocas:
 
Rudder ………………….………… Leme
Orange Trees …………………… Laranjeiras
Flemish …………………………. Flamengo
Put Fire …………………………. Botafogo
Hard Bark ………………………  Cascadura
Wide of the Little Beach ..... Largo da Prainha
Will Go Soon ....................... Irajá
Nice To Meet You .......…….. Encantado
To Walk There .................... Andaraí
Bless You ............................ Saúde
 
Em outra minha “bíblia tradutória” (A Tradução Vivida, Paulo Rónai, Rio, Educom, 1976), o autor cita um exemplo parecido, uma tradução para o inglês do poema “Tragédia Brasileira”, de Manuel Bandeira. É a história de um casal carioca que vive na base do separa-volta-separa, mudando de endereço o tempo todo. A destemida Elizabeth Bishop verteu integralmente, ou adaptou, inclusive os nomes dos logradouros:
 
The lovers lived in Junction City. Boulder. On General Pedra Street. The Sties. The Brickyard. Glendale. Pay Dirt. (...) (pág. 30)
 
Claro que precisaremos recorrer ao original para perceber que “Brickyard” é “Olaria”, que “Pay Dirt” é “Bonsucesso”, e assim por diante.




Isto me trouxe à mente um trabalho antigo, que fiz em parceria com meu saudoso amigo, o fotógrafo Cafi. Uma revista estrangeira (Big Brazil) fez uma encomenda de um ensaio tipo fotos + texto, e ele tinha (tem, pois o acervo continua) uma coleção espantosamente grande e boa de fotos do interior de Pernambuco e principalmente da Zona da Mata, com seus carnavais e maracatus de baque solto.
 
Bolamos juntos uma matéria em forma dos ABCs da literatura de cordel, com verbetes e fotos correspondentes a cada letra do alfabeto: ABC dos Ultra-Terrestres, um trocadilho com o conceito de “extra-terrestres”.


 

Acontece que os editores queriam receber o texto em português e em inglês, e na hora de traduzir os verbetes tive que ir recriando nomes de cidades pernambucanas que de repente adquiriram uma estranha poesia.  Acho que tinha Beautiful Garden, Nazareth of the Woods, Lemon Tree, Little Salty, Good Advice, Stairs… (Big Brazil, n. 25, novembro de 1999)
 
É neste ponto que Douglas Hofstadter interfere e começa a matutar sobre a necessidade (ou não) de traduzir nomes de lugares, ou nomes próprios em geral, porque eles já estão carregados demais de ressonâncias culturais e afetivas.
 
E isto coloca para nós, brasileiros, uma questão interessante. Imagine se alguém abre um texto de Raymond Chandler, uma aventura inédita do detetive Philip Marlowe, e lê:
 
Era mais uma noite californiana, uma daquelas noites quentes e abafadas de Os Anjos, em que sopram apenas alguns raros ventos, parecendo bafos de uma fornalha invisível...
 
Teria a mesma crise de riso que eu tive anos atrás, ao folhear um Anuário traduzido, em que no verbete relativo ao rock-and-roll se dizia algo como: 

A temporada musical de verão foi intensa, com grandes shows ao ar livre de bandas como os Mortos Gratos e as Pedras Rolantes...
 
E no entanto somos o país, ou pelo menos a cultura-escrita de um país, que usa Londres em vez de London, usa Nova Iorque em vez de New York, usa Júlio Verne em vez de Jules Verne, usa Napoleão em vez de Napoléon... Livros brasileiros de cem anos atrás, ou até menos, referiam-se a autores como Carlos Marx, Frederico Nietzsche, Teófilo Gautier...
 
Deveríamos usar os termos originais? E quando se tratasse de nomes em russo, em chinês, em japonês? Deveríamos aportuguesar, ou simplesmente fonetizar? Sou antigo, ainda não me acostumei com o fato de que Pequim agora se chama Beijing, e que Bombaim virou Mumbai. Duas boas rimas jogadas no lixo; isso é um desaforo.
 
Essas palavras todas são intranslatáveis, porque mesmo traduzindo-as nunca conseguiremos trazê-las integralmente para o texto que estamos digitando. Traremos sempre pedaços, farrapos, uma casca sem miolo ou um miolo sem casca. De termos assim é feita toda a grande literatura e a grande poesia do mundo, porque, como já disse Robert Frost, “poesia é aquela parte que se perde na tradução”.  





 




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