O vilarejo de Macondo, perdido na selva da Colômbia, tornou-se
famoso em Cem Anos de Solidão (1967),
de Gabriel Garcia Márquez; mas já havia nascido, em essência e medula, no livro
de estréia de Márquez, La Hojarasca (1955),
que no Brasil saiu com os títulos “O enterro do diabo” e “A revoada”.
Macondo é um microcosmo pulsante de memórias afetivas,
tanto coletivas quanto individuais, colhido em parte na Aracataca onde Márquez
passou sua infância, em parte nas memórias dos avós que por algum tempo o
criaram em sua companhia, e em parte na história delirante da Colômbia, um país
relativamente pequeno (tudo é relativamente pequeno comparado a esse mastodonte
geopolítico que herdamos) mas com uma topografia contraditória (mar, selva,
montanha) e uma história de violência absurda assimilada ao cotidiano.
Li agora a tradução de Joel Silveira para a Editora
Record (15ª. edição, 1999). Ele explica numa nota sua opção de tradução para o
título, “A Revoada”, uma vez que a tradução ao pé da letra seria “A folharada”.
Esse fenômeno descrito pelo autor é a migração maciça de gente que se segue à
criação de uma fonte de renda em grande escala, tal como as famosas
corridas-do-ouro (Serra Pelada, etc.) ou construção de grandes obras (Canal do
Panamá, Brasília, etc.). É um tsunami de gente disposta a tudo, e sem vínculo
com ninguém.
O prólogo do livro diz:
De repente, como se um redemoinho tivesse plantado raízes no centro do
povoado, chegou a companhia bananeira, perseguida pela hojarasca. Era um
aluvião revolto, alvoroçado, formado pelas sobras humanas e materiais dos
outros povoados, restolhos de uma guerra civil que parecia cada vez mais remota
e inverossímil. (...) [Eram] os escombros de numerosas catástrofes anteriores à
própria invasão. (...) [H]omens que amarravam a mula na grade do hotel,
trazendo como única equipagem um baú de madeira ou uma trouxa de roupa, e que
poucos meses após já tinham casa própria, duas concubinas e o título militar
que lhes ficaram devendo por haver chegado tarde à guerra. (p. 7)
A companhia bananeira, ou United Fruit Company, é o vilão
tradicional da obra de Márquez. Uma frota alienígena de poder incomparável, que
desce sobre os tesouros locais, suga tudo que pode e vai embora, deixando os
despojos para que alguém enterre. Uma invasão que traz no início o surto
vertical de prosperidade, faz pipocar fortunas a torto e a direito, e parte:
Aqui ficava uma aldeia arruinada, com quatro lojas pobres e escuras, ocupada
por gente desempregada e rancorosa a quem atormentavam a lembrança de um
passado próspero e a amargura de um presente deprimido e estático. Não havia
nada no porvir a não ser um tenebroso e ameaçador domingo eleitoral. (p.
118)
Copiando esses trechos agora meu olhar detecta o autor de
20-e-poucos anos, tão propenso a parelhas de adjetivos. Márquez passou anos reescrevendo La Hojarasca, cuja inspiração inicial
foi a viagem feita em 1952 com sua mãe para vender a casa da família em
Aracataca. É o episódio que abre seu livro de memórias Vivir Para Contarla (Bogotá: Editorial Norma, 2002).
O autor trabalhava como jornalista em Barranquilla, e
começou a transportar para este livro a influência de suas leituras de
Faulkner, Virginia Woolf e outros autores modernos que estava descobrindo junto
com seu círculo de amigos.
O livro foi recusado em Buenos Aires (na Editorial Losada)
por Guillermo de Torre, o cunhado de Jorge Luis Borges, mesmo com uma ressalva
elogiosa: “É preciso reconhecer no autor
seus excelentes dotes de observador e de poeta”. Márquez chorou pitangas
nos bares de Barranquilla, mas sobreviveu. Os amigos o consolaram lembrando que
o mesmo Guillermo de Torre havia recusado nada menos que o Residencia en la Tierra, de Pablo Neruda.
Antes de ser publicado, o romance era uma maçaroca
amarrotada que o jovem autor levava para todo canto. Durante algum tempo, sem
ter como pagar aluguel, Márquez descobriu um hotel de prostitutas onde um casal
pagava $ 1.50 de diária. Tornou-se tão habituê, e amigo dos funcionários, que
chegava desacompanhado e pagava o mesmo preço. A certa altura, já sem dinheiro,
deixava o manuscrito de refém (“guarde isso, é meu bem mais precioso, quando eu
pagar você me devolve”), mas tinha onde dormir.
E o livro? Numa entrevista de 1977 a “El Manifiesto”,
Bogotá, ele diz:
Tenho grande carinho por esse livro, e pelo sujeito que o escreveu.
Posso vê-lo perfeitamente: é um rapaz de 22 ou 23 anos, acredita que nunca mais
vai ter uma chance de escrever nada na vida, que esta é sua única oportunidade,
e trata de enfiar tudo ali, tudo que recorda, tudo que aprendeu de técnica e de
malícia literária em todos os autores que leu.
(Garcia Márquez habla de Garcia MárquezI, Bogotá, Renteria Editores,
1979)
Ele bebeu principalmente em Faulkner, sentindo uma certa
sintonia de espírito entre o seu Caribe e o Sul Profundo do escritor
norte-americano. La Hojarasca usa o
artifício faulkneriano de várias vozes narrativas que se entrelaçam o tempo inteiro,
contando uma só história, às vezes descrevendo a mesma cena, que surge
enriquecida por três olhares diferentes: um Coronel idoso, sua filha adulta e
seu neto de dez anos.
O “diabo” que deve ser enterrado é o centro misterioso da
história: um doutor que, no tempo da prosperidade, aportou em Macondo e de
início se instalou na casa do Coronel, mediante uma carta de recomendação do “Coronel
Aureliano Buendía”, visto no livro como alguém inquestionável, absoluto, merecedor
de todo o respeito.
O doutor exerce e depois abandona a medicina no povoado,
mas passa a ser odiado pela população quando, durante uma das refregas da
guerra civil, nega-se a atender os feridos. O romance começa com a notícia da
morte do doutor, que a esta altura morava em completo isolamento, e um belo dia
amanheceu enforcado. A população faz votos para que ele apodreça, mas o
Coronel, por dever de honra, chama a filha e o neto para acompanharem o corpo até
“a última morada”.
É uma novela densa e curta de 140 páginas, e nela surge
inteiro o retrato de Macondo, um povoado poeirento, silencioso, queimado por um
sol implacável, imóvel como um lagarto sobre uma pedra, percorrido por
lembranças de violências brutais e por segredos que ninguém comenta.
Uma das questões centrais do livro é: deve-se tratar com
humanidade alguém que foi desumano? Um canalha morto tem direito a sepultura,
ou deve ser deixado apodrecendo ao léu até nada mais restar dele? O livro tem uma epígrafe bem a propósito, da Antígona de Sófocles, onde o drama da
personagem é dar sepultura a seu irmão Polinice. Quando é o irmão de Antígona
todo mundo acha que ele tem esse direito, mas, e se um ex-nazista cai morto na
rua, deve ser levado ao Caju ou deve ser arrastado para o terreno baldio mais
próximo, onde os urubus se encarregarão do resto?
O “doutor” (não se sabe seu nome) é uma dessas figuras
escusas, um homem carrancudo, de poucas palavras que se instala como quase-dono
na casa do coronel, usa-o, depois joga-o fora, e é esse mesmo Coronel que
depois irá afrontar Macondo inteiro para levá-lo feito gente ao cemitério.
A esposa do Coronel, num momento em que não suporta mais
aquele hóspede antipático instalado na sua casa, queixa-se ao marido:
– É uma heresia continuar alimentando-o. É como se estivéssemos
alimentando o demônio.
E eu, que sempre tivera para com ele um complexo sentimento de piedade
e admiração (pois, embora não queira desfigurá-lo agora, havia muito de pena
naquele sentimento) insistia:
– Temos de suportá-lo. É um homem sem ninguém no mundo e que precisa
ser compreendido. (p. 74)
O Coronel, um dos narradores, prende-se ao doutor por
reverência ao coronel Buendía, e em parte por aquela solidariedade masculina
tão latino-americana, em que os homens constituem uma espécie de maçonaria
inquebrantável, mesmo quando sacaneiam uns aos outros. A filha do Coronel,
aliás, teve o garoto, um dos narradores da história, mediante um casamento
fracassado com um espertalhão que queria apenas os favores do coronel. É ela
quem narra:
Eu não conhecia meu noivo, nunca estivera sozinha com ele. Martín, no
entanto, parecia vinculado a meu pai por uma entranhada e sólida amizade e este
falava daquele como se fosse ele e não eu quem ia casar-se com Martín. (p.
95)
O Martín casa, engravida a esposa, consegue encaminhar os
negócios que tinha em mente e desaparece para sempre. E o Coronel, anos depois,
comenta assim o caso:
Chegou a minha casa com um paletó de quatro botões, segregando
juventude e dinamismo por todos os poros, envolto numa luminosa atmosfera de
simpatia. Casou-se com Isabel em dezembro, onze anos atrás. Já se passaram nove
anos desde que se foi com a pasta cheia de obrigações assinadas por mim,
prometendo voltar logo que tivesse realizado a operação que se havia proposto e
para a qual contava com a garantia dos meus bens. Já se passaram nove anos, mas
nem por isso tenho o direito de pensar que ele era um velhaco. Nem por isso
tenho o direito de pensar que seu casamento foi apenas uma jogada para
convencer-me de sua boa fé. (p. 106)
A “revoada” é a revoada de predadores, seja o tipo
selvagem (como o Doutor) ou o tipo doméstico (como Martín). São todos vampiros,
estão ali em busca da riqueza, do anonimato, ou de ambos. Macondo é um lugar
como a Amazônia brasileira de hoje, um fim de mundo onde é possível sumir do
mundo e reaparecer com outra cara, outro nome, e muito dinheiro no bolso.
É o Macondo onde vai se gestar, daí a uma década, o épico
de Cem Anos de Solidão: uma terra de
homens alucinados por miragens: a Pátria, a Amizade, a Honra, a Riqueza, a
Palavra Dada. Quando se disser, nesse livro subsequente, que o Coronel
Aureliano Buendía liderou trinta e sete revoluções armadas e perdeu todas, não
está se falando apenas em insurreições republicanas ou em sublevações militares
– é o grão de loucura instalado no DNA daquele povo, cujo corpo vive neste
mundo de cá, mas cuja mente vive num mundo alucinatório que só eles enxergam.
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