Faleceu neste 2 de fevereiro, aos 80 anos, um dos
escritores mais inquietantes da ficção científica e do fantástico na
Inglaterra.
Christopher Priest é um autor capaz de desconcertar o
público com a mesma eficiência de um David Lynch – são histórias contadas com
um profundo senso de realismo, descrevendo ambientes reconhecíveis, pessoas “reais”
vivendo situações e emoções “reais”, numa narrativa clássica, que nos conduz
com a fluidez de uma novela-das-oito...
E de repente acontece alguma coisa que faz em estilhaços
toda aquela realidade aparente e, como nos melhores livros de Philip K. Dick,
percebemos que existe uma realidade mais vasta, mais complexa, e geralmente
mais ameaçadora por trás daquilo tudo.
Seu livro mais conhecido é talvez The Prestige (1995), porque serviu de base ao ótimo filme de
Christopher Nolan, O Grande Truque (2006).
Até onde pude investigar, sua literatura continua inédita no Brasil.
Ele não deve ser confundido com seu homônimo
norte-americano, roteirista de numerosas séries de quadrinhos (Terminator, Liga da Justiça, etc.), principalmente para a DC Comics. Por outro
lado, o Christopher Priest britânico escreveu roteiros para a série Dr. Who e novelizações de filmes, entre
eles o eXistenZ (1999) de David
Cronenberg.
Um tema recorrente na obra dele é o das realidades mentais
paralelas e a possibilidade de cruzar de uma para outras. Em várias histórias
(não todas, claro) seus personagens vivem numa espécie de “realidade Escher”,
onde tudo é perfeitamente lógico e normal dentro de certos limites, mas,
dando-se um passo a mais, a gente está num universo contíguo, onde tudo (o
país, a cidade, as pessoas em volta) não são exatamente os mesmos que eram um
instante atrás.
Isto é muito visível no romance The Glamour (1985). O título se refere à capacidade que algumas
pessoas têm se se tornarem invisíveis, podendo entrar e sair fisicamente de um
ambiente sem serem percebidas. Não é uma invisibilidade tecnicamente produzida por
meio da física, da óptica, como na FC tradicional (H. G. Wells, etc.). É uma invisibilidade induzida
psicologicamente, como uma espécie de hipnotismo.
Diz uma personagem:
Eu dividia um apartamento com duas outras garotas da faculdade. Embora
eu me tornasse plenamente visível a elas quando necessário, durante a maior
parte daqueles três anos elas simplesmente supunham que eu estava ali por
perto, trancada em meu quarto, ausente. Foi a primeira mudança que precisei
aceitar, porque através delas aprendi que uma pessoa invisível é simplesmente
ignorada, presume-se que ela esteja ali, mas não de modo funcional. Elas me
percebiam quando eu precisava, e no restante do tempo agiam como se eu não
estivesse ali. (The Glamour, V,
III, trad. BT)
Alguém já sugeriu galhofeiramente a criação de um
subgênero da ficção científica e do fantástico, as “Histórias do Que-que-tá-contecendo”.
São um gênero fascinante porque são uma espécie de caminhada na corda-bamba: um
pequeno deslize ou forçação de barra por parte do autor, e o leitor,
desorientado, incomodado, acaba fechando o livro e pensando: “Eu não tou
entendendo nada, vou é ler outra coisa.”
Isso se dá com os leitores que exigem – e é um direito
seu – um lógica constante, uma coerência sólida, na história que está sendo
contada; o leitor (principalmente) que gosta de ver num livro uma reprodução do
mundo real. E existe o leitor que tem curiosidade por essas
quebras-de-realidade, pelo mistério nunca totalmente explicado, pela
impossibilidade permanente de fechar-a-conta na explicação de uma narrativa.
The Glamour aborda
temas permanentes na obra de Priest: a sugestão mental, a amnésia, as versões
conflitantes de um mesmo fato... A invisibilidade, que numa narrativa comum
seria fonte inesgotável de aventuras, serve aqui a uma narrativa mais complexa,
revelando um mundo organizado de uma maneira que nós, os “caretas”, não
suspeitamos.
Foi Nial quem me mostrou como entrar nos bancos, roubar os correios,
mas nunca precisávamos do dinheiro. O furto num banco era sempre um desafio,
algo feito por diversão, entrando na área dos funcionários à vista de todos,
pegando um punhado de notas da gaveta do caixa, misturando-as nas mãos diante
dos olhos deles. Às vezes levávamos algumas moedas, uma ou duas notas, só para
provar que era possível. Nunca estávamos em silêncio durante esses roubos,
conversávamos o tempo todo, às vezes rindo alto ou cantarolando pelo puro
prazer de sabermos que ninguém nos via, ninguém nos escutava. (V, V)
Os personagens vão penetrando aos poucos nesse submundo
dos invisíveis, onde existe todo um jargão técnico para explicar o fenômeno:
O segundo fator de unificação era a nuvem. (...) Cada indivíduo
invisível é cercado por uma aura, uma certa densidade de presença, que pode ser
detectada por outras pessoas. (...) Os invisíveis pegaram esse vocabulário e o
incorporaram ao seu jargão. Todos sabem a respeito da nuvem, e a chamam
assim. As pessoas comuns são as carnosas, o mundo real eles chamam de duro.
Chamam a si mesmos os glams. Isso faz parte de sua paranóia, defensiva
mas gabola: achar que são glamurosos. (V, III)
Isso é ficção científica? Eu acho que sim, porque conheço
poucos temas mais científicos do que o estudo da mente humana, da percepção
humana, do modo como os seres humanos organizam suas percepções sensoriais e as
codificam no cérebro de maneira a organizar seu comportamento individual e
coletivo.
The Prestige
(filmado como O Grande Truque, com
Christian Bale e Hugh Jackman) é a história de dois mágicos-de-salão na
Inglaterra vitoriana, super bem sucedidos e mortalmente rivais. Priest usa os
truques de mágica como um modo de ver as fronteiras da ciência – em que momento
um truque deixa de ser truque e se torna uma violação das leis da física. O mago Rupert Angier assim comenta em seu diário:
Um mágico, normalmente, revela um efeito que é “impossível”: um piano
parece sumir no ar, uma bola de bilhar magicamente se reproduz, uma mulher
passa através de um espelho. A platéia, é claro, sabe que o impossível não se
tornou possível. (Parte IV, 4-2-1901, trad. BT)
O que acontece, então? É o mago Alfred Borden quem explica:
Eu aprendi a arte do desvio da atenção, na qual o mágico se vale da
experiência cotidiana do espectador para iludir os seus sentidos – a gaiola de
metal que parece rígida demais para ser dobrada, a bola que parece grande
demais para ficar escondida na manga, a espada cuja lâmina de aço temperado
jamais poderia, não é mesmo? jamais poderia se envergar. (I, 3)
O livro é uma batalha fascinante entre Angier e Borden, ídolos do público de Londres, batalha de trucagens e talentos
que chega ao clímax com um número espetacular onde cada um deles descobre uma
maneira de sumir numa extremidade do palco e reaparecer, instantaneamente, na
extremidade oposta. O fato de que um deles acaba viajando aos EUA e recorrendo a
Nikolas Tesla arrasta a narrativa numa direção inequivocamente de ficção
científica.
Priest usa a magia, neste livro, quase como um substituto
da literatura ou do cinema: um modo de tornar possível o impossível, de tornar
presente algo que não existe, de fazer o público ver e ouvir uma coisa que não
está lá. Sua visão da profissão de mágico não é muito distante de uma visão do
autor de ficção científica:
Um mágico que seja inventivo abraça com entusiasmo qualquer inovação.
Qualquer engenhoca, qualquer brinquedo, qualquer invenção que aparece no mundo
deve lhe produzir esta reação: “Como posso usar isso para inventar um truque
novo?”. (...) E se uma nova mágica original chega a ser produzida, é somente
uma questão de tempo até que esse efeito seja reproduzido por outros. (II,
VII)
Mágica de salão, ciência, literatura, cinema, tudo são
ângulos diferentes por onde enxergar uma dualidade fundamental: o Real, que
nunca conheceremos, porque nossos sentidos e nosso intelecto e nossos
instrumentos são limitados; e as Aparências do Real, que criamos mediante estes
sentidos, intelecto e instrumentos.
É uma pena saber que Christopher Priest morre sem que nenhum de seus livros tenha sido publicado no Brasil. (Se conhecerem algum, agradeço a correção.) Sua
literatura não é fácil – na verdade, quando terminamos de ler um livro dele
temos a sensação de que somente agora estamos prontos para lê-lo de verdade. E é
uma leitura que sempre vale a pena.
Aqui, o website do autor:
https://christopher-priest.co.uk/
E aqui, o verbete a seu respeito na “SF Encyclopedia”:
https://sf-encyclopedia.com/entry/priest_christopher
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