quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

5018) A Literatura de Stepford (3.1.2024)




O australiano Damien Broderick, crítico e escritor de ficção científica, usa às vezes o termo “Stepford Science Fiction” para se referir àqueles livros que fazem tudo direitinho, de acordo com o figurino, mas não têm alma.
 
O termo vem do romance de Ira Levin, The Stepford Wives (1972), muito apreciado por algumas feministas. Um casal jovem se muda para a cidadezinha de Stepford, e a mulher logo descobre que algumas de suas vizinhas vivem eternamente voltadas para cuidar da casa e do marido. Andam elegantíssimas, passam o dia inteiro maquiladas e bem vestidas; dedicam-se a manter a casa “um brinco”; acham o maridão a coisa mais maravilhosa do mundo, e só conversam besteira. Parecem robôs. Ela começa a investigar, e... 
 
O livro foi filmado duas vezes. A primeira versão (Bryan Forbes, 1975), é excelente; a segunda (Frank Oz, 2004) é muito fraca. 


( a versão de 1975)


A figura do robô ou do andróide (ou da “ginóide”, no caso de simulacros femininos) é um confortável clichê da FC, e nos últimos tempos tem cedido espaço à figura da Inteligência Artificial (I.A.), um ser sem corpo, meramente comunicacional, capaz de trocar idéias por escrito, e às vezes falando via sintetizadores. 
 
Esta I.A. tem sido convocada recentemente a produzir textos literários, escrita criativa. Isto está explodindo por todos os lados ao mesmo tempo, e não se passa um dia sem que meu X-Twitter anuncie um novo software capaz de “escrever histórias obedecendo a qualquer prompt fornecido pelo usuário”. (Não, não usei ainda, não vou transferir para um software o único prazer que me resta.) 
 
Tudo parece sugerir que muito em breve a produção de “Stepford Literature” (seja de FC ou de qualquer outro tipo) irá se multiplicar exponencialmente. É um defeito humaníssimo essa fascinação pelo Menor Esforço, pela Solução Instantânea, pelo Resultado Sem Trabalho, pelo pedido à orelha de uma lâmpada árabe, prontamente atendido por um gênio todo-poderoso e submisso. 
 
O que talvez falte a essa turma seja “alma”. Essa literatura artificial é uma espécie de Embutido Verbal, uma salsicha textual – amassada, prensada, temperada e composta pela decantação de bilhões de textos preexistentes, de acordo com as especificações do prompt
 
O que é alma? Segundo o poeta Mario Quintana, alma é aquela parte, dentro de nós, que pergunta se temos alma. 




A Literatura de Stepford não nasceu com a Inteligência Artificial. Existe há séculos, desde que começou a produção industrial de histórias impressas. Nesse universo totalmente humano existem as histórias escritas “com alma” (com pensamento próprio, com criatividade, com vivência, etc.) e existem as histórias produzidas em série, a toda velocidade, para suprir um mercado de leitores pouco preparados e pouco exigentes. 
 
A literatura de folhetim do século 19 produziu uma literatura com alma (Charles Dickens, na Inglaterra; Dostoiévski, na Rússia; Alexandre Dumas, na França; e assim por diante) e produziu uma imensa quantidade de autores que, em última análise, não criavam muita coisa, apenas repetiam, com variações mínimas, o material que leram: enredos, descrições, ambientação, caracterização de personagens, etc. 
 
Margaret Dalziel (em Popular Fiction 100 Years Ago, 1957) define literatura popular como “os livros e revistas que são lidos apenas por entretenimento, por pessoas para quem o entretenimento é incompatível com o dispêndio de esforço intelectual ou emocional.” 



São acima de tudo histórias previsíveis, “um pouco mais daquilo mesmo”, um tipo de narrativa e de universo que o leitor precisa de apenas uns poucos livros lidos para aprender a identificar e dominar. É uma literatura baseada no conceito de “zona de conforto”, um horizonte de expectativas onde as surpresas precisam existir, senão ninguém compraria novos títulos, mas precisam existir dentro de um quadro previsível. 
 
Mesmo o dispêndio de tensão emocional e psicológica (nos romances de terror e de suspense, por exemplo) se dá numa situação controlada pelo leitor. É uma repetição do que já deu certo. 
 
Escritores profissionais fazem isso há séculos, e o desenvolvimento das “inteligências artificiais” é apenas um passo adiante nesse processo. Os algoritmos são capazes de filtrar bilhões de bytes de narrativas e identificar os pontos estruturais, recombinando-os mais ou menos como o faria um escritor apressado para receber o pagamento e liquidar as dívidas do fim do mês. 
 
Desde o folhetim europeu do século 19 até as “dime novels” da virada do século, os pulp magazines onde floresceu a ficção científica e a literatura policial, os gibis em quadrinhos, os seriados de aventuras no cinema e depois na televisão... em todos estes ambientes a reciclagem de histórias já existentes é a regra, e o talento individual residia na capacidade de tecer variantes ou de mascarar os enredos já conhecidos projetando-os em contextos diferentes. 
 
O Conde de Monte Cristo no espaço sideral resulta em The Stars My Destination – que é um ótimo livro, não por causa de Alexandre Dumas, mas por causa do talento incansavelmente inventivo de Alfred Bester. 
 
Os Sete Samurais no faroeste resulta em Sete Homens e Um Destino, que pode não ser tão bom quanto o original, mas na mão de John Sturges resulta num western que se pode ver sem tédio. 
 
Romeu e Julieta transposto para o universo dos bicheiros cariocas virou a novela Bandeira 2 de Dias Gomes, e se a novela era boa não era por se inspirar em Shakespeare, e sim por ser escrita por quem sabia escrever. 
 
Dr. Jekyll and Mr. Hyde de R. L. Stevenson virou O Professor Aloprado, e Jerry Lewis, ao invés de imitar o original, soube entender que o gancho principal da história não era uma oposição rotineira entre o Bem e o Mal, e sim a capacidade de produzir em si mesmo uma personalidade nova através do uso de drogas. 
 
The Truman Show de Peter Weir não é uma adaptação de Time Out Of Joint de Philip K. Dick, mas a idéia central é tão próxima (um mundo artificial construído só para manter a ilusão de um único personagem) que não custava nada eles terem adquirido os direitos do livro. (Acabaram fazendo um acordo depois, no tribunal.) 
 
Um dos divertimentos de quem trabalha com indústria cultural, cultura de massas, ou outro nome equivalente, reside justamente em pegar uma idéia já existente e virá-la pelo avesso, inverter sua trajetória, mudar seu contexto, mudar seu começo, mudar seu fim... e transformá-la em algo muito diferente. Isto também é criatividade. 
 
A Inteligência Artificial pode fazer isto? Talvez. Idealmente, ela deveria servir para “encurtar caminhos” a um autor de verdade. Sugerir variações, propor transformações num enredo, trazer material novo para compor personagens, etc.  De onde vem isso? Ora, vem (como sempre veio) do gigantesco banco-de-dados da Histórias Já Escritas. Tudo vem dali. 
 
A desigualdade de forças reside na enorme rapidez de processamento das I.As., seu acesso instantâneo a bilhões de informações, sua capacidade de usar um texto (meu, inclusive) sem que o autor fique sabendo e sem ter como cobrar por isso. Concorrência desleal entre a Força Bruta movida a bilhões de dólares e nossas cabecinhas minúsculas, movidas a boletos-a-pagar. 
 
É a super-mecanização do processo que nos assusta, não o processo em sim, porque é com ele que a indústria cultural vem trabalhando há séculos. 
 




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