Todo cinéfilo tem experiências traumatizantes. Um dia, quando eu for capaz de vencer o constrangimento, contarei de como, aos sete ou oito anos, fui ver um filme no Cine Capitólio, acompanhado por minha mãe. Estava com os pés cheios de calos sangrentos, provavelmente porque tinha acabado de ganhar um novo par de sapatos. (Eu geralmente usava sapatos velhos do meu pai, com um complemento de algodão na ponta pelo lado de dentro, para acomodar meus pés imberbes.)
Nem era essa a história que eu ia contar! Ela se
intrometeu por conta própria. Eu ia falar de um trauma de cinéfilo, e não de
minha fase Young Sheldon. O fato é que morávamos na Rua Miguel Couto, a dois
quarteirões e meio do Capitólio, e a partir de certa idade fui autorizado a ir
sozinho ao cinema, mas sempre na “primeira sessão”.
Havia duas sessões, às 19 e às 21 horas. A “segunda
sessão”, que terminava por volta as 23:00, pertencia somente ao mundo dos
adultos. Ninguém me autorizava a ver filmes na segunda sessão, e cresci colocando
essa proibição na mesma categoria mítica dos filmes “proibidos para menores de
18 anos”. Era uma terra incognita
onde tudo podia acontecer, e eu deveria evitá-la como o Diabo à Cruz ou vice-versa.
Uma vez, por um atraso cujo motivo não me restou, cheguei
bem atrasado para a primeira sessão. Comprei o ingresso, entrei correndo, achei
uma cadeira (eram assentos de madeira, não eram poltronas) e joguei-me nela. O
filme já tinha começado há bastante tempo, uns trinta ou quarenta minutos.
Gerou-se então o drama, na minha apavorada consciência.
Como eu tinha chegado no meio da primeira sessão, quando ela terminasse eu
teria de ir embora, tendo perdido o começo do filme. “Jamais!”, bradei
silenciosamente. O jeito era ficar... e ver a proibidíssima segunda sessão, e
ao chegar tarde em casa tentar sossegar a crise nervosa da família, isto se não
encontrasse a casa com as luzes todas acesas, e cheia de bombeiros e
investigadores da Polícia Civil.
Enquanto decidia, eu olhava as cenas na tela durante um
minuto, e depois tapava os olhos, “guardando-me” para rever o filme na sessão
seguinte. Vi pedaços desconexos da história, que ao que parece girava em torno de
um detetive de paletó e gravata, e uma mulher que ele conhece na rua e insiste
que ela se vista com uma roupa específica. No fim, a mulher se joga do alto de
uma torre!
Finda a primeira sessão, ocorreu-me uma das minhas
soluções salomônicas: para não chegar tarde demais em casa, eu não assistiria a
segunda sessão inteira – ficaria somente até chegar à cena em que eu tinha
começado a ver na sessão anterior.
Luzes se acenderam, multidão levantou-se e saiu, e eu
fiquei sentado, tranquilão, porque corria a década de 1950 e naquele século
abençoado a gente podia, com um ingresso apenas, ver o filme quantas vezes
quisesse. Ninguém evacuava a sala entre uma sessão e outra.
Começou a segunda sessão, veio o Canal 100, alguns trailers esquecíveis, e o filme recomeçou. Eu
estava numa atitude mental de “Episódio 2”. Lá vem meu detetive, coitado,
traumatizado pela morte da namorada. E de repente ela ressurge, a mesma, aliás
lindíssima, estimulando-me certas respostas biológicas. Mas então ela não
morreu! E eu mesmo me recriminava: “Imbecil, isso é o que tinha acontecido
antes do que já aconteceu!”.
Chegando à primeira cena que reconheci sem hesitação,
considerei a missão cumprida, e debandei ofegante para casa, onde minha chegada
às dez e meia da noite mal foi percebida, entre os bocejos e os noticiários radiofônicos
de sempre. Problema foi depois, na cama, tentar coordenar aqueles fragmentos de
história e aquelas várias mulheres que são uma só. Se tem um filme que não
entendo direito até hoje é Um Corpo Que
Cai, de Alfred Hitchcock.
Este exemplo me ficou, contudo, como uma espécie de
vacina. Até então, eu tinha a sensação mental de que um filme tinha o formato
de um círculo: algo que começava com um ponto minúsculo (a primeira cena) e ia
se expandindo até contrair-se rumo ao desfecho, e mostra o The End no ponto final. Isto que hoje chamam de “arco narrativo”,
só que bidimensional.
A partir daquela noite comecei a cultivar a imagem do
filme como uma ampulheta, e passei a chegar na metade. Ao sentar na cadeira, o
filme já estava existindo. Era algo já largo, expandido, algo vasto já
acontecendo para toda a platéia, e eu não sabia quem era fulano, quem era
sicrano, quem queria matar quem, qual a razão da briga, quem morava naquela
casa que volta e meia recebia uma chuva de balas. Fim do filme. Ponto final.
Recomeço. Ponto inicial. Meus personagens voltavam a
aparecer, uns remoçados, outros ressuscitados, todos inocentes quanto ao
próprio futuro, enquanto eu os contemplava com o fatalismo de um viajante no
tempo. A história começava a se alargar, a se auto-explicar, a se esclarecer –
e chegado ao ponto culminante eu me levantava da cadeira e caía fora.
O cineclubismo e as cinematecas me ajudaram a ver filmes
em forma de ampulheta: chegando no meio da história (=do círculo), vendo até o
fim, e depois revendo do minúsculo começo até o auge, o ponto onde eu tinha
chegado.
Depois repeti isso com as novelas de TV. Xeretando um
capítulo por acaso, não preciso saber a história. Tudo eu deduzo, tudo eu
suponho, eu adivinho, percebendo “do nada” quem inveja quem, quem olhou de
esguelha, quem titubeou no depoimento ao escrivão ou na declaração de amor à
lourinha ingênua, e sempre que me deparo com algo que não entendo, imagino:
“Tudo bem, já explicaram antes, eu é que peguei o bonde andando; vida que
segue”.
A não-necessidade de entender tudo é uma virtude
intelectual que deveria ser mais cultivada. Temos a mania obsessiva de querer
explicação para cada detalhe, cada frase, cada gesto. O cineclubismo, confesso,
me traumatizou nesse ponto. Por que motivo a vitrine da loja era azul? O que
foi que o rapaz cochichou no ouvido da moça? Por que os garotos foram embora da praia e
deixaram um chapéu de palha? O que era a construção esquisita que aparecia ao
fundo naquela cena?
Filmes não respondem tudo, e quando entramos num filme já
começado temos que fazê-lo de espírito
aberto, pronto a considerar relevante ou banal qualquer detalhe.
Umberto Eco, num documentário recente (La Biblioteca Del Mondo, Davide Ferrario) conta que na juventude tinha acesso gratuito a peças de teatro de pessoas amigas, mas por alguma razão precisava sair antes do final. Ficou amigo de um cara com quem sucedia o contrário: como trabalhava vendendo ingressos, só podia entrar para ver a peça depois que a bilheteria fechava, e desse modo nunca via os começos. Os dois passaram, então, a trocar informações sobre os pedaços faltantes das respectivas memórias teatrais.