sexta-feira, 24 de novembro de 2023

5005) O cinema e a ampulheta (24.11.2023)




Todo cinéfilo tem experiências traumatizantes. Um dia, quando eu for capaz de vencer o constrangimento, contarei de como, aos sete ou oito anos, fui ver um filme no Cine Capitólio, acompanhado por minha mãe. Estava com os pés cheios de calos sangrentos, provavelmente porque tinha acabado de ganhar um novo par de sapatos. (Eu geralmente usava sapatos velhos do meu pai, com um complemento de algodão na ponta pelo lado de dentro, para acomodar meus pés imberbes.) 
 
Os calos me incomodavam demais e começado o filme descalcei espertamente os sapatos, e devo ter chegado a cruzar a perna, ou pelo menos a botei numa posição tal que ela ficou dormente. Chegado o fim do filme, mexi a perna, e a volta da circulação, combinada com o enfiamento regulamentar do sapato, provocou uma dor tão intensa nos calos que Dona Cleuza foi forçada a me levar para fora da sala nos braços, como uma furibunda Pietà sertaneja, enquanto eu me lamentava em tão altas vozes que os circunstantes perguntavam, compadecidos: “Mas o que aconteceu, ele quebrou a perna?...” e ela retrucava, esbaforida: “Não!... É só safadeza mesmo!...” 

 
Nem era essa a história que eu ia contar! Ela se intrometeu por conta própria. Eu ia falar de um trauma de cinéfilo, e não de minha fase Young Sheldon. O fato é que morávamos na Rua Miguel Couto, a dois quarteirões e meio do Capitólio, e a partir de certa idade fui autorizado a ir sozinho ao cinema, mas sempre na “primeira sessão”.  
 
Havia duas sessões, às 19 e às 21 horas. A “segunda sessão”, que terminava por volta as 23:00, pertencia somente ao mundo dos adultos. Ninguém me autorizava a ver filmes na segunda sessão, e cresci colocando essa proibição na mesma categoria mítica dos filmes “proibidos para menores de 18 anos”. Era uma terra incognita onde tudo podia acontecer, e eu deveria evitá-la como o Diabo à Cruz ou vice-versa. 
 
Uma vez, por um atraso cujo motivo não me restou, cheguei bem atrasado para a primeira sessão. Comprei o ingresso, entrei correndo, achei uma cadeira (eram assentos de madeira, não eram poltronas) e joguei-me nela. O filme já tinha começado há bastante tempo, uns trinta ou quarenta minutos. 
 
Gerou-se então o drama, na minha apavorada consciência. Como eu tinha chegado no meio da primeira sessão, quando ela terminasse eu teria de ir embora, tendo perdido o começo do filme. “Jamais!”, bradei silenciosamente. O jeito era ficar... e ver a proibidíssima segunda sessão, e ao chegar tarde em casa tentar sossegar a crise nervosa da família, isto se não encontrasse a casa com as luzes todas acesas, e cheia de bombeiros e investigadores da Polícia Civil. 
 
Enquanto decidia, eu olhava as cenas na tela durante um minuto, e depois tapava os olhos, “guardando-me” para rever o filme na sessão seguinte. Vi pedaços desconexos da história, que ao que parece girava em torno de um detetive de paletó e gravata, e uma mulher que ele conhece na rua e insiste que ela se vista com uma roupa específica. No fim, a mulher se joga do alto de uma torre! 
 
Finda a primeira sessão, ocorreu-me uma das minhas soluções salomônicas: para não chegar tarde demais em casa, eu não assistiria a segunda sessão inteira – ficaria somente até chegar à cena em que eu tinha começado a ver na sessão anterior. 
 
Luzes se acenderam, multidão levantou-se e saiu, e eu fiquei sentado, tranquilão, porque corria a década de 1950 e naquele século abençoado a gente podia, com um ingresso apenas, ver o filme quantas vezes quisesse. Ninguém evacuava a sala entre uma sessão e outra. 
 
Começou a segunda sessão, veio o Canal 100, alguns trailers esquecíveis, e o filme recomeçou. Eu estava numa atitude mental de “Episódio 2”. Lá vem meu detetive, coitado, traumatizado pela morte da namorada. E de repente ela ressurge, a mesma, aliás lindíssima, estimulando-me certas respostas biológicas. Mas então ela não morreu!  E eu mesmo me recriminava: “Imbecil, isso é o que tinha acontecido antes do que já aconteceu!”. 
 
Chegando à primeira cena que reconheci sem hesitação, considerei a missão cumprida, e debandei ofegante para casa, onde minha chegada às dez e meia da noite mal foi percebida, entre os bocejos e os noticiários radiofônicos de sempre. Problema foi depois, na cama, tentar coordenar aqueles fragmentos de história e aquelas várias mulheres que são uma só. Se tem um filme que não entendo direito até hoje é Um Corpo Que Cai, de Alfred Hitchcock.




Este exemplo me ficou, contudo, como uma espécie de vacina. Até então, eu tinha a sensação mental de que um filme tinha o formato de um círculo: algo que começava com um ponto minúsculo (a primeira cena) e ia se expandindo até contrair-se rumo ao desfecho, e mostra o The End no ponto final. Isto que hoje chamam de “arco narrativo”, só que bidimensional. 
 
A partir daquela noite comecei a cultivar a imagem do filme como uma ampulheta, e passei a chegar na metade. Ao sentar na cadeira, o filme já estava existindo. Era algo já largo, expandido, algo vasto já acontecendo para toda a platéia, e eu não sabia quem era fulano, quem era sicrano, quem queria matar quem, qual a razão da briga, quem morava naquela casa que volta e meia recebia uma chuva de balas. Fim do filme. Ponto final. 
 
Recomeço. Ponto inicial. Meus personagens voltavam a aparecer, uns remoçados, outros ressuscitados, todos inocentes quanto ao próprio futuro, enquanto eu os contemplava com o fatalismo de um viajante no tempo. A história começava a se alargar, a se auto-explicar, a se esclarecer – e chegado ao ponto culminante eu me levantava da cadeira e caía fora. 
 
O cineclubismo e as cinematecas me ajudaram a ver filmes em forma de ampulheta: chegando no meio da história (=do círculo), vendo até o fim, e depois revendo do minúsculo começo até o auge, o ponto onde eu tinha chegado. 
 
Depois repeti isso com as novelas de TV. Xeretando um capítulo por acaso, não preciso saber a história. Tudo eu deduzo, tudo eu suponho, eu adivinho, percebendo “do nada” quem inveja quem, quem olhou de esguelha, quem titubeou no depoimento ao escrivão ou na declaração de amor à lourinha ingênua, e sempre que me deparo com algo que não entendo, imagino: “Tudo bem, já explicaram antes, eu é que peguei o bonde andando; vida que segue”. 
 
A não-necessidade de entender tudo é uma virtude intelectual que deveria ser mais cultivada. Temos a mania obsessiva de querer explicação para cada detalhe, cada frase, cada gesto. O cineclubismo, confesso, me traumatizou nesse ponto. Por que motivo a vitrine da loja era azul? O que foi que o rapaz cochichou no ouvido da moça?  Por que os garotos foram embora da praia e deixaram um chapéu de palha? O que era a construção esquisita que aparecia ao fundo naquela cena? 
 
Filmes não respondem tudo, e quando entramos num filme já começado  temos que fazê-lo de espírito aberto, pronto a considerar relevante ou banal qualquer detalhe.

Umberto Eco, num documentário recente (La Biblioteca Del Mondo, Davide Ferrario) conta que na juventude tinha acesso gratuito a peças de teatro de pessoas amigas, mas por alguma razão precisava sair antes do final. Ficou amigo de um cara com quem sucedia o contrário: como trabalhava vendendo ingressos, só podia entrar para ver a peça depois que a bilheteria fechava, e desse modo nunca via os começos. Os dois passaram, então, a trocar informações sobre os pedaços faltantes das respectivas memórias teatrais. 
 
E ele comenta a velha máxima de que a vida é um filme: entramos na sala depois que ele começou, e temos que sair antes do fim. 
 


 
 
 
 




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