sábado, 30 de setembro de 2023

4987) Os filmes de Samuel Fuller (30.9.2023)



 
Ele foi um diretor de filmes B norte-americanos. Essa fórmula é meio escorregadia, mas não é exagero dizer que Samuel Fuller (1912-1997) foi um diretor que nunca deu muita bola para altos orçamentos ou elenco de estrelas. Preferia a relativa liberdade de fazer filmes com orçamento de mediano para baixo,  onde ninguém tinha muita expectativa de lucro. De vez em quando, dava a sorte de trabalhar com um produtor que confiava nele e lhe dizia: “Vá em frente, eu garanto”.
 
Para os cinéfilos do cinema de arte, é bom lembrar da ponta que ele faz em O Demônio das Onze Horas (“Pierrot Le Fou”, 1965) de Jean-Luc Godard, aparecendo como ele mesmo durante uma festa e trocando algumas frases com Jean-Paul Belmondo.
 
Andei vendo alguns filmes de Fuller nos últimos meses. O excelente policial noir com Richard Widmark , Pickup on South Street (1953), que lhe trouxe problemas com o FBI de J. Edgar Hoover.

 
The Big Red One (1980), um filme de guerra magnífico, com um grupo de soldados jovens chefiados pelo veterano Lee Marvin, registro autobiográfico das campanhas de que Fuller participou na II Guerra Mundial (invasão da Sicília, invasão da Normandia, descoberta dos primeiros campos de concentração).




E Run of the Arrow (1957), um western envolvendo soldados da cavalaria e índios, influência clara sobre Dança Com Lobos (1990).


 
Tudo isto me conduziu ao saite do Sesc Digital (filmes muito bons para ver online, gratuitamente) onde estão dois filmes sobre o diretor.

 
O primeiro filme é A Fuller Life (2013), dirigido por sua filha Samantha Fuller. Ela soube aproveitar muito bem o enorme material autobiográfico deixado pelo pai. Até entrar para o Exército, Fuller trabalhou como jornalista: repórter, colunista, caricaturista. Publicou alguns romances, e deixou um extenso material de memórias, que no fime são lidas por amigos seus – um time que inclui Mark Hammill, Wim Wenders, Tim Roth, Jennifer Beals, William Friedkin e vários outros.
 
Os longos e perspicazes depoimentos de Fuller são cobertos com imagens que ele mesmo registrou durante a guerra – sua família localizou, após sua morte, inúmeras bobinas  de filme em 16mm. que ele levou consigo durante os combates, fazendo um precioso registro dos campos de batalha.



https://sesc.digital/conteudo/cinema-e-video/tigrero-o-filme-que-nunca-existiu

 
O outro filme, Tigrero: a Film That Was Never Made (1994) tem muito interesse para nós brasileiros. Num certo momento em sua carreira, em 1954, Fuller, que era um aventureiro nato e gostava de se meter a filmar nos lugares mais inóspitos, teve a idéia de vir ao Brasil para filmar os índios carajás, em Mato Grosso.
 
O pretexto era um argumento intitulado Tigrero, a história de um casal de brancos que se aventura na selva junto com o personagem-título, um caçador de onças local. Acontecem aventuras variadas, e um triângulo amoroso acaba se formando entre os protagonistas, que em tese iriam ser interpretados por Tyrone Power (o marido), Ava Gardner (a esposa) e John Wayne (o caçador). 
 
Fulller foi ao Mato Grosso e filmou centenas de metros de película registrando a vida dos índios, que iria servir de pano-de-fundo ao drama principal, mas por motivos variados (e narrados no filme) a produção não avançou. 



(Jim Jarmusch e Samuel Fuller em frente ao Copacabana Palace)

 
Quarenta anos depois, coube a dois jovens cineastas a idéia de levar Fuller de volta à tribo dos carajás, para se reencontrar com alguns índios que ele filmara da primeira vez. O “mestre de cerimônias” do filme é Jim Jarmusch (Daunbailó, Estranhos no Paraíso, Dead Man, etc.), que acompanha Fuller na viagem, entrevistando-o e extraindo dele toda a complicada história do filme que não foi feito.
 
O segundo é o diretor do filme, Mika Kaurismaki, um finlandês que, como seu irmão Aki Kaurismaki, dirige documentários e filmes de ficção muito interessantes e que às vezes passam despercebidos. Mika Kaurismaki morou vários anos no Rio de Janeiro, e tinha um bar (Mika’s Bar) na Praça N. S. da Paz, em Ipanema, onde eu próprio assisti vários shows e cheguei a cantar também, no tempo em que era cantor independente [sic].
 
Tigrero leva esse trio improvável para os cafundós do Mato Grosso, filmado pela câmera de Jacques Cheuiche, e ali Samuel Fuller reencontra vários dos seus colegas de aventura fílmica do passado, numa tribo já bastante modificada pela invasão da cultura branca. Ele exibe para os indígenas o material filmado anos atrás, conversa com eles, etc.
 
Além da curiosidade de um diretor com esse perfil filmando no Brasil, a atração do filme é mesmo a personalidade de Fuller. Se no filme póstumo, dirigido pela filha, vimos uma biografia em imagens com o depoimento dele na primeira pessoa, em Tigrero vemos o próprio Fuller, já com mais de 80 anos, caminhando inquieto pra lá e pra cá, e falando sem parar diante da câmera.


(Samuel Fuller)

Ele tem o carisma dos diretores aventureiros, inteligentes e com vasta leitura, mas sem grandes elucubrações intelectuais. Fumando charutos o tempo inteiro, com uma inquieta cabeleira branca, queimado de sol, visualmente ele parece um cruzamento improvável entre Harpo Marx e o ex-ministro Roberto Campos. É do tipo capaz de contar um filme inteiro e segurar a plateia o tempo todo, e no fim dar uma de suas gargalhadas desarmantes, como quem diz: “Não se preocupem, tô só viajando numa idéia”.
 
Fuller era incensado pela turma do Cahiers du Cinéma nos anos 1960, e sem dúvida os franceses contribuíram decisivamente para que ele, perseguido ou esnobado em seu país, mantivesse a chama acesa, bem como o charuto.  Os EUA devem à França uma compreensão mais profunda dos artistas que eles mesmos produzem, desde Edgar Allan Poe (resgatado por Baudelaire) até Philip K. Dick e os músicos de jazz do pós-guerra. Vive la France.