terça-feira, 9 de maio de 2023

4940) Rita Lee (1947-2023) (9.5.2023)




“A mais completa tradução de São Paulo”, no verso de Caetano Veloso. Eu não diria a mais completa, porque acho meio utópica a idéia de que uma parte possa representar bem o todo. Eu diria que era a idéia mais femininamente charmosa de São Paulo, pois naquele tempo eu (falo de eu-adolescente, eu-dezesseis anos quando ela tinha dezenove) via São Paulo como uma cidade lúgubre, cinzenta, fuliginosa, tchecoslovaca, uma espécie de 1984 dublado em português. A São Paulo terrificante do Lugar Público de José Agrippino de Paula.
 
Rita (a Rita dos Mutantes) era luminosa, irreverente, irrequieta e dizia coisas inteligentes. Uma mistura de Janis Joplin com Gelsomina. Se o Tropicalismo daquele tempo nos parecia uma noite no circo, o número dos Mutantes já sugeria que em breve eles teriam sua lona própria e fariam turnês independentes. A voz de Rita ia desde a carícia de “Le Premier Bonheur du Jour” até o caipirês caricato de “2001” (a famosa “Astronarta libertado...”). Num dia ela aparecia vestida de noiva, no outro vestida de bruxa. “São Paulo é assim?”, pensava eu. “Se for, eu quero conhecer São Paulo.” (Só conheceria dez anos depois, mas esta é outra história.) 




Volto a dizer aqui algo que já falei sobre a imagem da mulher sexy. Minha geração (não falo pelas outras) foi submetida a um bombardeio de mulheres fatais do cinema, aquelas que Carlos Drummond chamava de “as sereias vulcânicas da Broadway”. Era Elizabeth Taylor, Jayne Mansfield, Rachel Welch, Kim Novak, Ursula Andress... Mulheres fatais, mulheres capazes de descarrilar uma locomotiva com um olhar. E vigorosas. Lembro de uma palestra de Antonio Callado em que ele se referia a personagens femininas “tão atemorizantes quanto uma nadadora olímpica iugoslava”.
 
Rita Lee era o contrário disso, e se não foi a mais completa tradução de sua cidade foi a de sua época, a época das garotas de minissaia, botinhas, boné, casaco, gola olímpica, as Annas Karinas, as Jeannes Moreaus, as garotas-do-apartamento-ao-lado. Jogando em cima disto, claro, a carnavalização figural dos Tropicalistas. Com ou sem fantasia, eram garotas da vida real que se comportavam (inclusive no palco) como gente. Você não imagina Marlene Dietrich dando uma topada no palco. Eu conseguia imaginar Rita Lee dando uma topada, se estabacando no chão, e levantando às gargalhadas.


 
Os Mutantes traziam também um fio de ficção científica – a FC que nunca mais deixei de associar à capital paulistana. Ao que parece (versões divergem), o grupo tirou seu nome do livro O Império dos Mutantes (“La Mort Vivante”, Stefan Wul, 1958), que o grupo leu sob este título na edição portuguesa (a tradução brasileira se chamou “A Cadeia das 7”). 
 
Era um livro sobre clonagem, em que o DNA de uma menina é reproduzido sete vezes (por segurança, para o caso de alguma falha) em laboratório. Algo foge ao controle (ou não seria FC) e daí a pouco temos sete meninas clones, idênticas, telepáticas e (pouco a pouco) todo-poderosas. 
 
Havia nos Mutantes, talvez, essa utopia ingênua do “somos todos um só”, o famoso “I am he, as you are he, as you are me, and we are all together”. Não eram: a banda brigou, Rita foi expelida, decolou numa carreira solo, voltou arrasadoramente no fim dos anos 1970 com “Mania de Você”, ao lado de Roberto de Carvalho; e o resto é história. Um pop brasileiro com voz feminina, pegada roqueira, doçura bolerística, sarcasmo urbano, letras de quem gostava de ler.


 
A história de Rita foi se me revelando de pouquinho, ao longo dos anos. Eu sabia desde o início que ela tinha ascendência norte-americana, e achei que “Lee” era sobrenome da família, sendo seu nome completo “Rita Lee Jones”. 
 
Nos anos 1980, já morando no Rio de Janeiro, comecei a ajudar Duncan Lindsay (“o irmão de Arto”) numa pesquisa dele sobre ex-Confederados norte-americanos que, derrotados na Guerra da Secessão, vieram morar no Brasil a partir de 1867. Entre eles, algum antepassado de Rita, cujo “Lee” não era sobrenome de família, e sim homenagem ao famoso General Lee. 
 
Segundo descobri através de Duncan, havia toda uma história de Confederados que se auto-exilaram no Brasil após a derrota, muitos indo morar na Amazônia, e outros no interior de São Paulo. Em Santa Bárbara d’Oeste, terra do pai de Rita, há um Cemitério dos Americanos. A cidade de Americana (SP), deve seu nome a essa corrente migratória. Que nos deu, afinal, a “ovelha negra” da família Jones.  
 
É mais um fio-de-aranha da História, daqueles difíceis de enxergar e difíceis de romper, ligando a guerra de libertação dos escravos norte-americanos e a formação do rock brasileiro. Como diziam os dialéticos, tudo se relaciona, tudo está interligado. Isto não quer dizer que tudo seja causa de tudo, mas que tudo é efeito-conjunto de um tecido, de um entrecruzamento de presenças. 
 
Quando algum artista morre, os coleguinhas de imprensa sempre vêm nos perguntar “qual é o legado que Fulana de Tal nos deixa”. O legado somos nós, companheiro. O legado de uma pessoa como Rita Lee é a pessoa que eu sou hoje, e não desmereço o legado dela dizendo que há mil outros legados, além do dela, teclando estas palavras.
 
Somos um tecido, um texto, fios entrecruzados por onde passa uma corrente de alguns ampères. E o mais interessante é que, mesmo que a partir de hoje um desses fios não esteja mais aqui, a corrente vai continuar passando. Por que? Não sei, só sei que a gente faz amor por telepatia. 



(ilustração by Fraga)