(ilustração: Eric Joyner)
Um dos assuntos mais interessantes de agora, em termos de
criação artística, são os numerosos portais onde as nossas balbuciantes
“inteligências artificiais” produzem textos, imagens e criações variadas,
obedecendo aos estímulos e pedidos dos usuários.
Você chega num, e diz: “Quero a pintura de um Papai Noel
com o rosto de Marlon Brando, entrando na chaminé da Casa Branca, com um saco
cheio de metralhadoras”. E em minutos você tem o resultado. Pode prestar, e
pode não prestar, que é justamente o que acontece quando se faz uma encomenda a
um desenhista humano.
Você vai num saite de texto e pede uma redação de 50
linhas sobre as possíveis influências do Dom
Quixote na obra de Jorge Luís Borges, e recebe um texto razoavelmente bem
argumentado, se bem que com uma certa ingenuidade pedestre de quem se vê na
obrigação de justificar cada passo dado ou explicar cada nome que mencionou.
E la nave va.
Comentei aqui alguns dos resultados:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/10/4872-super-inteligencia-artificial.html
Há um milhão de discussões envolvidas nisso, e uma
pergunta que me ocorreu logo no começo foi: A ficção científica terá antecipado
esses processos? Certamente que sim, e alguns exemplos me ocorreram, mas ainda
indiretos, distantes.
Achei agora no Twitter um exemplo mais concreto, de Bill
Christensen, citando um conto antigo:
O conto é atribuído a F. L. Wallace (1915-2004), um autor
razoavelmente obscuro, que publicou numerosos contos na revista Galaxy mas (segundo a SF Encyclopedia) não reuniu sua obra em
livro, embora uma boa parte dela esteja disponível hoje em forma de e-book, no
projeto Gutenberg.
O conto “The Music Master” saiu no número de novembro de
1953 da revista Imagination.
Certamente não é o único, nem deve ter sido o primeiro,
mas em todo caso achei o exemplo interessante porque foge um pouco à tecnomania
da FC da época. Parece com um conto da Galaxy, mesmo não tendo sido publicado
ali. Tenho um interesse especial por histórias de FC que envolvem as artes
(pintura, música, poesia, etc.) e a proposta de Wallace, de um artista-robô que
faz imagens por encomenda, soou interessante.
Aqui, o trecho compartilhado no Twitter por Bill
Christensen:
A proposta é interessante, inclusive, como se percebe na
resposta do artista-robô, porque é difícil pintar um quadro obedecendo ao
estilo de Goya e de Miró; os dois são meio incompatíveis. Mesmo sendo espanhóis
(Goya era aragonês, Miró era catalão), são de épocas, temperamentos e escolas
muito diversas.
Ora, hoje em dia temos à mão “artistas robô” não apenas
dóceis em atender nossos pedidos, mas ansiosos por estímulos. Querem desenvolver
a própria inteligência. Precisam de milhões de consultas diárias, centenas de
milhões de pedidos, de queixas, de correções, porque cada pedido nosso que elas
atendem significa um refinamento a mais na sua capacidade de entender perguntas
humanas e produzir respostas.
A Inteligência Artificial é hoje como uma criança de cinco
anos. Está se apossando da agilidade e da riqueza de movimentos corporais
(leia-se Boston Dynamics), do discurso verbal (ChatGPT), do desenho, das técnicas
visuais (Dall-E, Midjourney), e até mesmo da poesia de Dylan Thomas ou de Bob
Dylan (veja aqui: https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/08/4849-bob-dylan-via-computador-382022.html).
Nenhuma destas empresas está querendo produzir um monstro.
Cada uma delas está preocupada apenas em criar “uma coisa que se mova por si só”.
Se elas vão se juntar depois, e daí vai surgir um monstro, foge à sua alçada.
Sempre foi assim.
Digressão: lá em Campina Grande tinha um doido chamado
Garapa, que vagava pelas ruas e odiava ser chamado por esse nome. Às vezes ele
vinha pela calçada, e um menino gritava lá de trás: “Água!...” Outro respondia lá na frente: “Açúcar!...” Ele se abaixava, começava a recolher pedras
para arremessar e gritava de volta: “Mistura pra tu ver, feladaputa!...”
Isto é interessante porque tem algo da inteligência
artificial, não é verdade? Ele sabia que estava sendo insultado de “Garapa” pelos
garotos; mas havia um protocolo implícito de que ele só tinha o direito de
reagir se a “senha”, a “password” fosse proferida.
Os fragmentos da Inteligência Artificial são produzidos
em diferentes laboratórios, em diferentes partes do mundo, mas... mistura pra
tu ver!
Na página de Bill Christensen (@Technovelgy) alguém se
dispôs a fazer o mesmo pedido, e eis aqui a ilustração de “rockets to the Moon in style of Miro and Goya”, produzida pelo “Craion (ex-Dall-E Mini)”.
Aqui entre nós, o resultado ficou muito mais para a praia
de Joan Miró do que para a praia pictórica de Goya, confirmando a advertência
do robô-artista do conto, de que “Goya nunca ouviu falar em foguetes”.
Em todo caso, não é este o ângulo para avaliar esta
questão. Não se trata de saber se a Inteligência Artificial está produzindo
obras de arte à altura dos pintores que figuram em seu banco-de-dados. Trata-se
de perceber que cada vez que um ser humano faz uma consulta ou uma encomenda
deste tipo, está ajudando essa Inteligência Artificial (que é burrinha, por
definição) a se tornar mais inteligente, ou seja, a absorver, classificar,
acessar e recombinar cada vez mais informações.
Somos cobaias, num certo sentido; estamos sendo
utilizados passivamente por essa Inteligência Artificial. Claro que isto não é
uma iniciativa dela, pois não as tem. A iniciativa é nossa, porque produzimos
um arremedo de ser, uma hipótese de ser, cuja possibilidade nos fascina e nos
impele a tentar aperfeiçoá-la “pra ver no que vai dar”. E um dia a estátua que
esculpimos no mármore estará tão perfeita que vai olhar em nosso rosto, vai
sorrir, vai dar um tapinha em nosso ombro e dizer: “Valeu. Pode ir embora, não
preciso mais de você.”
Ela aprendeu com a gente.