Edgar Allan Poe deve estar se remexendo dentro do túmulo,
a julgar pelas recentes adaptações de sua obra ao cinema e à TV. Não que sejam
todas ruins, mas porque este é o karma
ancestral de Edgar, autor de “O Enterramento Prematuro”.
A adaptação mais recente, por sinal, é bastante boa,
dirigida pelo especialista em horror Mike Flanagan (Doctor Sleep, The Midnight
Club etc.), e que adota uma técnica que parece a dos enredos de escola de
samba – apertar no espaço disponível o máximo de informações relativas ao tema.
A Queda da Casa de
Usher (Netflix, 8 episódios) é um melodrama Grand Guignol que não economiza sangue, animais monstruosos,
mutilações, traições cruéis, vinganças diabólicas, inimigos sobrenaturais. Dito
assim parece uma coisa inassistível, mas a verdade é que o excesso de
estilização da narrativa acaba diluindo o “gore”
(o horror especificamente físico) e transformando tudo num espetáculo tão
artificial e pouco realista quanto uma ópera.
Flanagan faz uma colcha-de-retalhos da obra de Poe,
lançando mão de várias histórias, entrelaçando-as umas às outras, e
distribuindo nomes de personagens com a prodigalidade de um rei distribuindo
títulos de nobreza a quem o apóia.
O enredo: o magnata Roderick Usher e sua irmã Madeline
são chefes do conglomerado farmacêutico “Fortunato”, que destrói a saúde da
população com remédios de efeitos colaterais mortíferos. Madeline é solteira,
mas Roderick tem dois filhos legítimos e quatro ilegítimos, todos eles
herdeiros de sua fortuna. E todos, em certa medida, odiando-se uns aos outros.
A “Fortunato” está sendo submetida a um processo judicial, conduzido pelo investigador
Auguste Dupin. Na juventude ele e Roderick eram amigos, depois romperam
relações, mas resta algum respeito mútuo entre os dois.
(Carl Lumbly como "Dupin", Bruce Greenwood como "Usher")
A série toda é um longo flashback em que Roderick chama
Dupin a sua casa para lhe explicar como e por quê seus seis filhos foram
assassinados, um após o outro, no espaço de poucos dias. A conversa entre os
dois é a moldura mais ampla que envolve os oito episódios.
Bilionários e “serial killers” são dois temas constantes
na dramaturgia do século, ligados por um vínculo essencial, que talvez seja a
alucinação do poder absoluto. Os crimes desta série seguem o modelo do conto
referido em cada episódio: “A Máscara da Morte Rubra”, “Os Crimes da Rua
Morgue”, “O Gato Preto”... Há um certo exagero “gore”, mas é bom ter em mente que o mesmo nível de exagero já está
nos contos de Poe, escritor fascinado por mortes bizarras, mecanicamente
produzidas, com excesso de mutilação e horror.
Isto, para mim, coloca a série dentro do subgênero dos
“crimes seriais” em que existe um padrão para os assassinatos. Exemplos típicos
são O Abominável Dr. Phibes (Robert
Fuest, 1971), com Vincent Price, onde os crimes seguem o padrão das pragas do
Egito; e As Sete Máscaras da Morte (Douglas
Hickox, 1973), também com Price, onde os crimes fazem citação a peças de
Shakespeare.
(Carla Gugino como "Verna")
Mike Flanagan toma muitas liberdades com os textos
originais de Poe, mas isto nem é defeito nem é novidade. São raras a adaptações
fiéis dos contos de Poe. As mais conhecidas e mais cult são as que Roger Corman produziu e dirigiu na década de 1960,
e têm pouquíssimo a ver com o original. Poe está ali como uma inspiração, uma
aura, um diapasão para afinar o inconsciente coletivo de roteiristas, diretores
e elenco.
No presente caso, Flanagan conta com uma direção de arte
excelente, criando numerosos ambientes, muito diversos entre si, e que
reproduzem o mundo mental de cada personagem. É uma família de bilionários,
então é lícito supor que cada um dos filhos Usher criou seu ambiente à imagem e
semelhança de si mesmo. O elenco também é ótimo, dentro do estilo levemente
histérico que filmes desse tipo precisam extrair dos atores. Os diálogos são abundantes,
rápidos, as pessoas falam o tempo todo, parecem metralhadoras, e felizmente o streaming nos dá a chance de voltar
atrás e ouvir/ler tudo de novo, para poder entender. Eu não gosto de ver filmes
deste tipo na sala de cinema.
O ponto central do elenco é Roderick Usher, interpretado na
velhice por Bruce Greenwood, ótimo ator que já fez o papel de John Kennedy em Dez Dias Que Abalaram o Mundo. Ele tem
uma dicção clássica e elegante, e a força impositiva do patriarca. Uma presença
curiosa no elenco é a de Mark Hammill, o antigo Luke Skywalker das aventuras
espaciais, fazendo aqui o papel de Arthur Gordon Pym, o advogado sinistro e
implacável da família Usher.
(Mark Hammill como "Arthur Gordon Pym")
Narrativas referenciais como esta, maciçamente baseadas
numa obra pré-existente, deparam-se às vezes com um problema de
verossimilhança. Lembro-me da novela Mandala
(1987-88) da Rede Globo, em que o mito de Édipo era trazido para os tempos
modernos com um elenco que incluía Felipe Camargo (Édipo), Vera Fischer
(Jocasta) e Perry Salles (Laio). Na época, a seção de cartas de leitores dos
jornais vivia cheia de protesto neste tom:
“Será que esse pessoal não se toca? O cara se chama Édipo, conhece uma
mulher chamada Jocasta... Eles nunca leram sobre as lendas gregas? Eles não
sabem o perigo que ambos estão correndo?”
A questão levantada pelos leitores tem partes iguais de
razão e de ingenuidade. De fato – vivemos num mundo em que até o conceito de
“Complexo de Édipo” foi criado a partir da lenda, e o cara tem esse nome e não
sabe?!
Por outro lado, mesmo sendo uma história modernizada, que
se passa no Brasil contemporâneo, é preciso – para que a história faça sentido,
e a tragédia implacável se cumpra – que a lenda seja ignorada. Que tudo aquilo
esteja acontecendo “pela primeira vez”. Portanto, Mandala da Globo existia num universo paralelo em que a lenda grega
de Édipo (e a peça de Sófocles) não existem.
É um pouco como a situação do filme Yesterday (2019, Danny Boyle), em que um rapaz vai parar num
universo onde os Beatles não existiram... e ele fica milionário tocando as
músicas de Lennon & McCartney e dizendo que são suas.
Para que a história da Queda da Casa de Usher faça sentido, é preciso que tudo aquilo
aconteça num universo onde a obra de Edgar Allan Poe (que impregna todas as
situações, todos os personagens) não exista – para que seus personagens não
saibam avaliar o perigo de um gato preto, de um cálice de Amontillado, e assim
por diante.
Que eu me lembre, o nome de Edgar Poe não é citado por
nenhum dos personagens, embora seus versos sejam recitados o tempo inteiro. É
um universo paralelo onde aqueles personagens não vieram ao mundo no século 19,
mas no 21, com os mesmos nomes, mais ou menos os mesmos traços biográficos,
personalidades semelhantes, etc. Todos
cumprindo ali o karma de serem
personagens de um dos criadores do gênero horror – mas eles não o sabem, pensam
que são pessoas como as outras, e por isto caminham cegamente para a destruição
que nós, no universo do lado de cá, sabemos ser inevitável.
Muti bom seu texto, análise, mas não assistiria-assistirei porque achei salada demais, uma mistureba danada! Abração!
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