Toda pessoa tem direito a uma mania mansa, uma mania
inofensiva, algo que na pior das hipóteses consome seu tempo livre e uma fatia de
seu orçamento. Tem gente que coleciona chaveiros, latas de cerveja, cartões
postais, selos. Tem gente que coleciona recortes de jornal. Tem gente que anota
resultados de futebol, de eleições, de corridas de cavalos.
Meu pai era charadista e cruzadista, ou seja, gostava de
resolver (e criar) charadas e problemas de palavras cruzadas nas muitas
revistas que comprava todo mês, como Brasil
Enigmista ou A Recreativa (para
ele, Coquetel e congêneres eram para
crianças ou amadores.) Eu contraí esse
vírus, e ainda hoje tenho que me conter quando vejo uma “grade” cruzadista pela
frente.
Por volta de 1960 ele cismou de criar um dicionário de
palavras cruzadas, e começou a anotar definições em pequenas fichas pautadas
para as quais ele próprio construiu uma porção de gavetinhas de madeira. Não
lembro qual era o viés do dicionário; acho que eram palavras organizadas pelo
número de letras. Ele dava a mim e a minha irmã Clotilde um “agrado” monetário
para a gente copiar definições das dezenas de dicionários que tinha na estante.
Aquilo exigia tempo, aquilo ocupava muito espaço,
desarrumava a casa, e eu teria uns dez anos quando por motivos que nunca
entendi ele desistiu do trabalho e mandou que a gente rasgasse tudo. Eu, que me
divertia copiando as fichas, me diverti rasgando-as.
Meu pai era expansivo e piadista quando estava de bom
humor, mas quando ficava contrariado fechava-se, virava uma ostra, uma esfinge.
Cada pessoa tem seu temperamento. O dele era de não fazer confidências, o meu é
de não fazer perguntas. Nunca me passou pela cabeça, a não ser postumamente,
chegar para ele e perguntar: “Por que o senhor desistiu do dicionário?”.
Outra mania que ele tinha era o futebol, e esta eu herdei
de corpo inteiro. Ele se entusiasmou loucamente com a Copa do Mundo de 1958, e
comprava todas as revistas que traziam matérias sobre a Copa da Suécia: Manchete Esportiva, Fatos & Fotos, A Gazeta
Esportiva Ilustrada... (Acho que a Revista
do Esporte, em formato menor, só surgiu depois.)
Não só comprou como encadernou todas. E para mim a Copa
de 1958 (cuja comemoração em tempo real presenciei meio aturdido, porque tinha
apenas 7-8 anos) se transformou depois numa aventura literária. Eu pegava um
daqueles enormes volumes encadernados, sentava no sofá, e passava uma manhã
inteira lendo as detalhadíssimas reportagens sobre cada jogo, com mil fotos,
diagramas ilustrativos de cada gol da Seleção, cartuns, piadas, entrevistas...
e as páginas assinadas pelos irmãos Nelson Rodrigues e Mário Filho.
Em 1961 nos mudamos triunfalmente para a “casa própria”,
no bairro do Alto Branco. Nesse tempo
meu pai já tinha tantos livros que a mudança foi feita em dois dias: no
primeiro dia, uma camionete levou os livros, e no dia seguinte veio o resto da casa.
O primeiro dia foi épico. O Alto Branco era (ainda é) uma colina muito úmida,
com muita água à flor da terra, muita lama. A camionete atolou a 100 metros da
casa, e atraiu a curiosidade de dezenas de garotos desocupados. Minha mãe,
atarefada e expedita, coordenou uma força-tarefa com promessa de níqueis e
lanches. A vizinhança ficou assistindo a caravana de guris descalços que sobraçavam
pilhas de livros e os levavam ao seu destino final, voltando na carreira para
buscar mais.
“Ah, Fortuna inviolável!...” A casa não era muito grande, os livros
atravancavam tudo, mas havia uma garagem e meu pai nunca dirigiu carro, de modo
que ergueram na garagem uma parede e uma porta. Os livros desceram para lá. A
umidade porejava das paredes. Em poucos anos, as coleções de Manchete Esportiva etc. foram sendo
corroídas por manchas de mofo. Era um papel-jornal barato, vulnerável. Enormes
crateras esverdeadas se abriam no sorriso largo de Vavá, no choro de Pelé
abraçado a Gilmar, na calma hitchcockiana de Vicente Feola, no cigarro no canto
da boca de Nelson ao comentar “Meu Personagem da Semana”.
E a coleção de dezenas de volumes capa-dura foi
trasladada melancolicamente para o lixo, enquanto eu reprimia os inevitáveis
trocadilhos tipo “o mofo deu”. Meu pai nada dizia (pelo menos na minha frente).
Acendia um cigarro e olhava a paisagem.
Devo ter herdado um pouco disso tudo, não só das manias
como do estoicismo. Não sei onde foram parar as centenas de fichas técnicas de
filmes que anotei em meus tempos de cineclube (Diretor/Produtor/Roteiro/Música/Fotografia/Elenco),
nem os incontáveis cadernos onde copiava com fervor religioso os jogos do Treze
(data/local/juiz/renda/gols do 1º. Tempo/gols do 2º. Tempo/placar
final/escalação do time).
Perderam-se ao longo das minhas muitas mudanças de cidade
em cidade. Espalharam-se com meus livros de bolsos, minhas revistas de contos
policiais, meus Argonautas, meus Vampiros, para não falar nas pilhas de Pasquim, Opinião, Movimento, Versus, Flor do Mal, Rolling Stone...
Meu tesouro se espalhou pelo tempo afora, tal como o Tesouro de Agra que
hoje repousa no fundo do Tâmisa.
Quando alguém vem na minha casa e diz: “Puxa vida, você
tem muitos livros, e acumula muito papel”, eu respondo baixinho: “Isto é apenas
a ponta de um iceberg que derreteu”.
Todo maníaco é um obstinado, dizem os tratados médicos.
Meu pai não desistiu e durante a década de 1970 iniciou um novo projeto
faraônico: o Dicionário do Que, um
dicionário inverso que ele datilografou em stêncils e rodou no mimeógrafo-a-tinta
que mantinha no quarto dos fundos da casa do Alto Branco.
Cabe aqui, para os leigos (as pessoas normais) uma
explicação sobre os dicionários inversos. Quando a gente vai resolver uma “palavras-cruzadas”,
a gente se depara com uma definição que nos encaminha para a resposta. “Pedra
de sacrifício”, é o que nos pedem: e a gente cedo ou tarde descobre que é
“ara”. Minha iniciação à obra de Sigmund Freud veio ao descobrir que “o
substrato instintivo da psique” é “id”.
Ora, muitas dessas pistas se iniciam pela palavra “Que”,
esse coringa verbal que é para nosso idioma um problema e uma solução. “Que tem duas pernas” = não demoramos
muito a entender que a palavra é bípede.
Entretanto, os dicionários comuns são organizados em função da palavras, e não
de suas definições. Sem saber a palavra, jamais encontraremos a
definição-pista.
Vai daí que os cruzadistas dedicam-se a compilar
“dicionários inversos”, organizados a partir das definições, e indicando no fim
a palavra correspondente. Meu pai se dedicou a organizar todas as definições
começadas com “Que...”, um projeto babélico, borgiano. Bem ou mal, ele produziu
alguns volumes mimeografados, que distribuiu entre seus confrades da TERNOR (Tertúlia Nordestina), um grupo de
aposentados bonachões que se dedicava ao mesmo passatempo.
Corta para a década de 1990, eu já morando no Rio de
Janeiro, trabalhando como redator da TV Globo. Discutíamos pautas para os
programas, e alguém sugeriu uma matéria sobre clubes de decifradores de
charadas e palavras cruzadas: “é um pessoal excêntrico, mas simpático”. Eu me
ofereci para pesquisar, e certa tarde bati à porta de um desses clubes, numa
transversal da Av. Rio Branco. Havia dois ou três senhores conversando, entre
poltronas, estantes e um balcão. Expliquei que era da TV (o que sempre produz
um alvoroço de solicitude), estava fazendo uma matéria...
Mandaram-me sentar, crivaram-me de perguntas. Tive que
demonstrar o meu conhecimento do assunto – e olhe, nunca me faço de rogado
nesse departamento. Quando falei que meu pai pertencia à TERNOR, soltaram
exclamações de familiaridade.
– Qual o pseudônimo dele? – perguntaram. (Todo charadista
se assina com pseudônimo, mesmo que sua identidade seja conhecida de todos).
Respondi:
– “Pequeno Polegar”. Ele inclusive compilou um dicionário
inverso, chamado Dicionário do Que.
Os caras arregalaram os olhos. Um deles foi à estante e
não demorou a trazer o volume com capa de papelão, que folheei e reconheci,
comovido. Apertaram minha mão, serviram-me cafezinho, responderam tudo que
perguntei. A matéria da TV acabou saindo de pauta, mas aquela tarde foi ganha.
Não estou sendo demagógico se disser que ver um livro meu na vitrine de uma
livraria carioca me dá muito prazer, mas ainda menos do que tive ao encontrar
naquela salinha modesta o resultado da mania mansa de Seu Nilo, e a vindicação
das muitas noites que passou compilando (sem ambição de glória, sem cobiça de
fortuna) o seu livro de areia.
Bah, Braulio, que bonito, acabei comovido com algumas passagens.
ResponderExcluirTambém conservo as minhas manias e há uma cratera no meu acervo de acumulador de inutilidades: ao sair do Rio pra SP em 97, deixei empacotada a minha vidinha no sótão de um prédio em Ipanema.
Tempos depois, a síndica chamou um mensageiro da caridade e mandou levar tudo. Como num incêndio sem chamas, só sobraram lembranças.
Muito bom BT. Seu Nilo era uma pessoa marcante e bem original. Meu velho pai, Lopes, gostava muito dele!!
ResponderExcluirQue coisa linda! Bela homenagem a papai.
ResponderExcluirEu sou sobrinho de Braulio e neto de Nilo Tavares. Morei com meu avô até os 12 anos e acompanhei de perto essas manias dele. A foto que Braulio colocou no cabeçalho do artigo eu vi ser tirada. Nela, papai (eu o considerava, e ainda considero, meu pai) estava ajeitando a antena da TV, trepado no muro que dividíamos com a vizinha (Dona Vera). Na elaboração do dicionário dos QUE mencionado por Braulio, eu também colaborei organizando e fichando os verbetes. E ainda presenciei a impressão dos primeiros exemplares. Além disso, meu avô também me iniciou no charadismo e com apenas 8 ou 9 anos ele ajeitou para que eu publicasse uma charada minha na revista Tertúlia Nordestina, sob o pseudônimo de HALLEY (em homenagem ao cometa). Conto isso para mostrar que após Braulio ir embora pra Salvador essas manias prosseguiram lá no Alto Branco: a cultura, a poesia, a intelectualidade, o prazer da leitura... E foram esses os maiores tesouros deixados pra mim pelo meu querido avô e pai. Além de sua alegria e bom humor, é claro. QUE me faz lembrar e sorrir lacrimejante = NILO TAVARES.
ResponderExcluirRômulo, você acabou herdando algumas dessas "funções secretariais"... Uma trabalheira, e que nos deixou muitas lições e muitas lembranças boas.
ResponderExcluirBonito texto.
ResponderExcluirCom tantas mudanças na paisagem urbana local, eu fiquei curioso em saber se essa casa no Alto Branco ainda está de pé?
Muito interessante
ResponderExcluirAdoro a forma como expressa no texto.
Uma pergunta como consegue ter a facilidade de escrever?? Pois sempre tenho bloqueios criativos