Como todo fã dos Beatles durante os seus escassos oito
anos de atividade (entre 1962 e 1970), me roí de impaciência e de inconformismo,
durante muitos anos, pela impossibilidade de assistir o terceiro filme do
grupo, o famigerado Magical Mystery Tour
(1967). Feito para a TV, o filme não foi exibido no Brasil a não ser em algumas
transmissões obscuras ou sessões privadas a que eu, um simples mortal, jamais
tive acesso.
Tive acesso agora, porque um amigo me arranjou uma cópia
em MP4. É engraçado. Mudariam os Beatles ou mudei eu? Fiquei meses com o filme
no computador, comecei a vê-lo umas três ou quatro vezes, ao longo de alguns
meses, e só agora vi até o fim.
MMT foi a
primeira criação profissional dos Beatles depois da morte do empresário Brian
Epstein. Paul McCartney, esse otimista incorrigível (e indispensável em
qualquer grupo) convenceu os amigos, todos muito abatidos, de que a melhor
coisa a fazer era inventar um projeto novo e mergulhar de cabeça em sua
realização. McCartney é uma espécie de Tom Cruise do rock, um cara que acredita
nos projetos com olhos brilhando, joga-se nele de corpo e alma, e convence todo
mundo a fazer o mesmo.
O filme foi muito mal recebido em sua primeira exibição
na TV inglesa. Foi rodado em cores, no mês de setembro, e a televisão o exibiu numa
sessão natalina em preto-e-branco. No alvoroço do lançamento, e sem o precavido
Brian examinando a papelada, eles venderam os direitos de exibição para a
BBC-TV, cujos canais eram quase todos em preto-e-branco... e foi assim quer o
filme foi visto em horário nobre, com grande publicidade, por 15 milhões de
espectadores.
A imprensa britânica deitou e rolou em cima dessa
oportunidade de falar mal da banda. Entende-se. Jornalistas muitas vezes
sentem-se presos à obrigação moral da imparcialidade. Quando elogiam alguém seguidamente, começam a
torcer por uma chance de falar mal, para provar que têm uma opinião
distanciada, objetiva, neutra...
O filme é uma bagunça, uma prova de que entusiasmo e
talento não resultam necessariamente num trabalho bem feito. Os Beatles
encheram um ônibus com amigos e atores, e partiram estrada afora para uma
viagem de cinco dias, sem roteiro, sem história, dispostos apenas a improvisar
coisas engraçadas ao longo do trajeto. Talvez influenciados pelo clima de “vale
tudo” dos filmes de Richard Lester (A
Hard Day’s Night, Help!), eles
acharam que bastaria ter algumas câmeras circulando e dizer coisas engraçadas.
A verdade é que a receita talvez até funcionasse, se
houvesse uma produção de verdade por trás. Philip Norman, na sua ótima
biografia da banda (Shout!, Simon
& Shuster, 1981) comenta (trad. BT):
O caos se instalou desde o princípio. A Magical Mystery Tour, ao invés
de flutuar rumo a um crepúsculo psicodélico, arrastou-se fisicamente como uma
lesma pelas rotas por onde os britânicos viajam nas férias de verão, caçada por
uma caravana de veículos da imprensa, rodeada em cada parada aleatória por
hordas de turistas e de fãs. Avistando uma placa que indicava a direção de
Banbury, foram nessa direção, para ver se em Banbury havia um parque de
diversões. Não havia, e eles retornaram para Devon, enquanto o trânsito se
engarrafava à frente e atrás do ônibus. (p. 314)
Brian Epstein (que morrera semanas antes, em 27 de
agosto) tinha sido uma presença invisível, uma barreira. Uma de suas funções
principais era isolar os Beatles dos problemas práticos, para que se
concentrassem na música. Sem ele, a bolha se rompeu. O faz-tudo Neil Aspinall,
homem de confiança da banda, comenta, no mesmo livro:
Quando Brian estava vivo, nunca tínhamos de nos preocupar com esse tipo
de coisa. Bastava pedir quinze carros e vinte quartos de hotel, e eles
apareciam. (...) Viajamos até Brighton e tudo que fizemos foi filmar dois
deficientes físicos na praia. O que devíamos ter filmado era o caos que
estávamos provocando – o ônibus tentando cruzar uma ponte estreita demais, com
filas e filas de carros atrás de nós, e depois tendo que desistir, dar meia
volta, e passar por todos aqueles motoristas que nos amaldiçoavam, até que John
ficou furioso e arrancou os posters pregados no lado de fora do ônibus. (p.
315)
Depois da caótica filmagem, seguiram-se onze semanas de
edição do material. Dez horas de negativo foram reduzidas a 52 minutos. Tony Bramwell,
outros amigo-de-fé que assumiu parte das tarefas do falecido Epstein, comenta:
Paul vinha ao estúdio pela manhã e editava o material. Depois, à tarde,
aparecia John, e re-editava o que Paul tinha feito. Depois chegava Ringo... (p.
315)
É visível no filme a tentativa de reproduzir o clima
inconsequente e de nonsense dos
filmes de Richard Lester, mas os músicos não tinham o talento de Lester. Ele dominava
o segredo do ritmo, da montagem e da narração, como provou nos filmes da banda
e em A Bossa da Conquista (“The Knack”,
1964). Muitos trechos de MMT lembram
seus achados absurdistas, como a
tenda no meio de um terreno vazio onde os ocupantes do ônibus entram e vão dar
num espaço enorme, com palco e platéia.
Há outra sequência maluca, uma espécie de corrida
desembestada entre o ônibus da MMT e pessoas usando bicicletas, carros, etc.,
numa gincana que lembra (com um pouco de boa vontade) o funeral acelerado de Entr’acte (René Clair, 1924). A bagunça
noturna dentro do ônibus, com todo mundo cantando e tocando, faz lembrar o
clima da Rolling Thunder Review que Bob Dylan organizou anos depois (com uma
produção mais eficiente).
Uma cena surrealista mostra uma mulher imensamente gorda
sonhando que está comendo num restaurante onde um garçom (John Lennon)
serve-lhe montanhas de espaguete, com uma pá. Lennon chamou seu personagem de
“Pirandello” (o autor de Seis Personagens
Em Busca de um Autor), talvez numa alfinetada pouco sutil ao filme em si.
Talvez nem tudo esteja perdido. O diretor Peter Jackson
produziu recentemente um milagre, aproveitando o material bruto do filme Let It Be e criando os três episódios da
série Get Back, uma obra totalmente
diversa, e excelente. Quem sabe as dez horas de material de MMT estejam escondendo um filme – para
quem seja capaz de dominar a arte e a ciência da montagem.
O filme-para-TV frustrado poderia resultar num registro
semelhante ao de Jackson com Get Back?
Duvido muito. As imagens e os sons originais são de natureza completamente
diferente. O que Magical Mystery Tour
possui como vantagem, no entanto, é a intenção (totalmente anos-1960) de não ter a obrigação de fazer sentido, e
meramente explorar a magia, o mistério, a jornada sem final em vista, a
experiência lisérgica, o absurdo, o nonsense, o humor anárquico.
Não se pode extrair de um material filmado com esse
propósito (e filmado de modo canhestro, amadorístico) um discurso lógico e
apolíneo. Seria preciso entregar o material nas mãos de um daqueles cineastas underground capazes de reproduzir na
montagem as técnicas de associação livre, de fluxo da consciência, da
enumeração caótica, da colagem psicodélica. Algo na linha do cinema-ensaio-poético,
como experimentava Chris Marker ou o Jean-Luc Godard de filmes-colagem como Film Socialism, Histoire(s) du Cinéma, Adieu
le Langage etc.
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