sexta-feira, 30 de junho de 2023

4957) Entrevistas Transcendentais: Edgar Allan Poe (30.6.2023)



 
O sol de Baltimore, nesta tarde de outono e céu azul, brilha como se por trás de uma redoma, lançando muito pouco calor sobre a rua. Caminho devagar, olhando as fachadas, até localizar o número 203. É uma casa de esquina com tijolos marrons, dois andares, uma lucarna projetando-se para fora lá no alto, onde deve ser o sótão. Subo os degraus da entrada, toco a campainha. Sou recebido por uma curadora metódica, trajando uniforme. De iPad em punho, ela checa meu agendamento, pede meu login e senha, indica-me a escada. 
 
Olho em torno. Mobília de época: móveis pequenos, reluzentes, nenhuma toalha de mesinha fora do lugar. Vou subindo para o sótão, onde ele fez seu gabinete de escrita. Do segundo andar para o sótão a escada é meio desconjuntada, insegura, e com o teto muito baixo. Imagino com que esforço os visitantes idosos que vieram antes de mim conseguiram subir. No sótão, o teto é inclinado, mal permitindo a uma pessoa de estatura normal ficar com o corpo ereto. 


(Amity Street 203 / Google View)
 
Ele está sentado numa cadeira junto à lucarna. No parapeito largo da janela há um corvo empalhado, sobre um pedestal de madeira. Numa mesinha próxima, uma bandeja com chá.  Ele se ergue, aprumado, cavalheiresco, estende-me a mão com a pose de um gentleman que perderá os ossos antes de perder as boas maneiras. Indica-me uma cadeira próxima, serve chá para nós dois. As mãos tremem ligeiramente, mas não hesitam. 
 
Trocamos amabilidades; ele ergue uma sobrancelha diante do meu sotaque, mas estou me esforçando para falar de forma compassada, separando bem as palavras, mesmo que isso me dê um ar artificial. A voz dele é profunda, melodiosa, e passa-me pela cabeça a idéia de que em outros tempos poderia ter sido um locutor de rádio. Mas não: é o teatro, o teatro que ele nunca praticou, mas tem no sangue. Ou talvez tenha praticado a vida inteira – autor, ator e personagem. 
 
BT – Mr. Poe, o senhor produziu uma quantidade espantosa de textos em sua curta existência. Na minha biblioteca, o volume dos seus “Contos e Poemas Reunidos” tem 1.026 páginas, e o de “Ensaios e Resenhas” tem 1.472. Como vê essa produção, hoje? Preferiria ter escrito menos? Mais, talvez? 
 
POE – Sou um escritor profissional. Não penso em termos da obra acumulada, penso apenas no texto que produzo naquele momento. Vivo em função do presente, não da posteridade. Não tenho do que me queixar. Tive uma vida difícil, cheia de conflitos familiares, decepções pessoais, penúria financeira; mas não a vejo como uma vida diversa da maioria das pessoas da minha época. E, embora muitos possam me considerar um incompreendido, fui um editor respeitado, meus contos e poemas foram recebidos com admiração. Muitos contemporâneos meus, homens e mulheres de talento, não alcançaram certos patamares de sucesso que eu conheci. 
 
BT – Pessoas de talento, concordo; mas sem a sua fagulha de genialidade. 
 
POE – Sempre achei  que os maiores gênios, os mais brilhantes intelectos que a humanidade produziu, não devem ser procurados nas academias ou nos salões científicos, e sim no manicômio ou na prisão. Terão sido gênios, mas em seu século foram tidos como incoerentes ou insanos. O vigor de uma inteligência excepcional não garante que nos comunicaremos com nossos contemporâneos. Sem ter um semelhante com quem dialogar, um indivíduo desse tipo prega no deserto e amedronta até os que mais o querem. Nossas sociedades se organizaram de forma a reconhecer o talento individual e empregá-lo em seu benefício, mas o “gênio”, pelo seu caráter de incontrolável rebeldia, terá sido na maioria das vezes vítima de incompreensão, perseguições e castigos. 


(Poe, by Court Jones)
 
BT – O senhor é tido, hoje, como um dos criadores, ou precursores, de três tipos muito populares de literatura: a narrativa de mistério detetivesco, a ficção científica e o conto de horror. Não sei se, na época em que escrevia, essas distinções eram assim tão claras. 
 
POE – Não eram. Como editor, descobri cedo o quanto é útil produzir no leitor algum tipo de expectativa prévia. Algumas vezes usei o termo “contos de raciocínio”, pois este me parece um filão pouco explorado da literatura. A literatura do meu tempo era fervilhante de sentimentos, de emoções ora nostálgicas ora assombrosas, e eu também as explorei, ao meu modo. Mas minhas histórias sobre a importância do raciocínio, da interpretação correta de fatos e aspectos da realidade constituem, para mim, um gênero legítimo dentro da literatura. Contos tão diversos quanto como “O Escaravelho de Ouro”, “Descida no Maelstrom”, “Tu És o Homem” e “A Queda da Casa de Usher” abordam esse tema: o raciocínio aplicado a situações limite. 
 
BT – Ainda hoje os apreciadores da literatura policial discutem sobre a importância do detetive raciocinador nessas narrativas.
 
POE  – Considero um erro, ou pelo menos uma limitação desnecessária, apor o rótulo “policial” a essa literatura, que nem sempre envolve polícia ou criminosos. O raciocínio é uma das luzes que o Criador nos deu, e não é privilégio de policiais. (ergue-se, caminha pelo sótão enquanto com as mãos ilustra a cena que descreve) Tenho em minha casa uma gata que aprendeu sozinha a abrir a porta para sair, pulando para agarrar-se ao ferrolho, movendo-o com a pata, impulsionando a porta para abri-la, e depois pulando para o chão e saindo. Os animais têm sua forma de raciocínio; mais rudimentar que a nossa, por certo, mas real. Pude utilizá-la na justificativa para os crimes da Rua Morgue, onde um animal com instinto imitativo mata uma pessoa sem saber o que está fazendo. 
 
(Detém-se diante de uma gravura na parede, mostrando um gato preto em pose imperial, sobre uma almofada.)  Quem tem animais domésticos, sejam cães ou gatos, sabe dos seus lampejos extraordinários de inteligência na resolução de problemas práticos. No homem, esses lampejos podem ser fonte infinita de inspiração literária, para além da mera investigação criminal. Isto que chamam hoje de “detetive” não se distancia muito de um médico que em dez minutos de conversa com um doente reúne elementos suficientes para deduzir o mal que o aflige, ou de um relojoeiro, que abre o nosso relógio e rapidamente descobre a razão do seu defeito. É o raciocínio aplicado aos dados da vida concreta. 
 
BT – Esta sua tendência de pensamento nunca entrou em conflito com a sua fascinação pelos aspectos sombrios, inconscientes e indecifráveis da mente humana, e do Universo? 
 
POE – Nosso espírito tem marés que avançam e recuam, como as dos oceanos. Não nego que em vida tive fases de exaltação e fases depressivas, bem como fases de auto-confiança no intelecto e fases de pavor diante de aspectos inexplicáveis de nossa existência. Falei que o terror não vem da Alemanha, vem da alma, tentando exprimir essa percepção de que esse medo reside em nós e não podemos fugir dele. Podemos entendê-lo, interpretá-lo, e neste caso a mente raciocinadora nos ajuda, se não a eliminar o terror, a colocá-lo em palavras. Não deixa de ser um triunfo parcial. 
 
BT – A palavra nos dá uma sensação de poder, diante da realidade...
 
Ele volta a sentar. Estende o braço e acaricia a penugem do corvo empalhado, com ar distraído.
 
POE – Sim... Quando me referi ainda agora à inteligência dos animais, não mencionei o corvo, que é rapidíssimo na solução de problemas, usa instrumentos agarrados com o bico, e demonstra ter uma clareza de pensamento que nos assusta. Por isso o elegi como protagonista de um dos meus poemas. Ele é, sim, o espírito da noite, o anjo ou demônio que negreja. Mas ele se exprime através da palavra, de uma única palavra: “Nevermore”. O que esta palavra significa fica a cargo do raciocínio do narrador, e este, a cada passo, dá a ela um sentido diferente em relação a sua própria vida. Talvez sejamos como o corvo. Talvez toda a literatura da espécie humana seja essa palavra, que um dia será lida por uma espécie superior à nossa, tal como o homem é superior ao corvo. E essa espécies de seres superiores dará, ao que escrevemos, sentidos que nos escapam. 


(Poe, by Edouard Manet)

 
BT – Esta sua valoração da inteligência nos animais poderia se estender, talvez, até as máquinas?
 
POE – Em princípio, nada impede que isto ocorra, se imaginarmos a inteligência como um processo combinatório definido por uma mecânica de possibilidades e escolhas, uma faculdade meramente acessória do Espírito, e sem a transcendência deste. O senhor deve lembrar o meu artigo sobre o Turco Enxadrista. Recusei-me a crer numa máquina capaz de jogar xadrez, nas condições daquela época. Pareceu-me mais plausível, pela navalha de Occam, que se tratasse de um mero truque: um homem oculto no gabinete de madeira. Nada impede, porém, que em condições técnicas mais avançadas isso possa ser obtido. O xadrez pode ser reduzido a combinações matemáticas, e os exemplos da calculadora de Pascal ou da máquina de Charles Babbage poderiam ser direcionados para operações tão complexas quanto as que o jogo requer. 
 
BT – E quanto a operações mais complexas ainda? A criação de textos ficcionais, por exemplo?
 
POE – Em primeiro lugar, devo insistir na distinção entre a mente humana, onde brilha o Espírito, e uma máquina, por mais poderosa que seja. Com esta ressalva, não vejo por que seria impossível criar um mecanismo capaz de gravar em sua memória um número extraordinário de combinações numéricas, e depois atribuir a esses elementos as mesmas funções das nossas palavras e dos fragmentos do nosso discurso. É uma operação análoga à que descrevi em “O Escaravelho de ouro”, só que com palavras e frases no lugar de letras, portanto em outro patamar de complexidade – imenso, mas não inatingível. 
 
BT – A criação de frases seria um processo meramente estatístico? 
 
POE – Não apenas isso, mas esse aspecto é essencial para a criação de filtros de probabilidade. No xadrez, em cada momento há centenas de jogadas possíveis, permitidas pelas regras; mas o intelecto do jogador descarta de pronto todas as jogadas inócuas, contraproducentes, irrelevantes, e se concentra naquelas que têm maior peso para a disputa travada no tabuleiro naquele instante. Num criptograma, estabelecemos regras de probabilidade para as letras, sendo a letra “E” a mais frequente em nosso idioma inglês; e regras específicas, como a de haver sempre uma letra “U” após a letra “Q”, etc. Esse cálculo pode ser ampliado para pequenas frases. “Céu azul”, “céu nublado”, “céu chuvoso” são combinações frequentes; “céu cavalo” “céu xícara”, “céu assoalho” não fazem sentido e podem ser descartadas. As regras gramaticais eliminariam automaticamente bilhões de respostas possíveis, e o avanço seguinte da máquina se daria num repertório de escolhas bem mais reduzido. 
 
BT – Pode-se criar textos literários dessa maneira? Prosa, poesia?
 
POE – É discutível, mas é uma questão em aberto. Assim como não há mistério concebido pela mente humana que outra mente humana não possa esclarecer, também não existe prodígio concebido pela imaginação humana que o engenho humano não possa tornar realidade. Faço apenas a ressalva de que a um processo 100% mecânico de criação de textos faltariam duas condições essenciais à literatura humana: alma e corpo. 
 
Entre os bilhões de combinações de palavras que nossa mente analítica pode formar, é o Espírito quem decide as mais elevadas, as mais nobres, as mais carregadas de verdade humana. 
 
E há também o nosso corpo, de quem nossa linguagem tanto depende. Criamos literatura com o corpo, tanto quanto com a mente. Alguém incapaz de escutar conceberia um poema como “The Bells”? A audição e a visão são essenciais a tudo que produzi. Muitos efeitos de contos como “A Tale of the Ragged Mountains”, “The Sphinx”, “The Oval Portrait”, “A Descent of the Maelstrom” dependem essencialmente do modo como nossos olhos enxergam. Por outro lado, efeitos sonoros e percepção auditiva são essenciais em ”The Tell-Tale Heart”, “The Fall of the House of Usher” etc.  Pergunto: uma máquina combinatória, sem corpo, poderia espontaneamente produzir histórias desse teor?
 
O senhor deve recordar as críticas do Chevalier Dupin aos procedimentos da polícia parisiense, no episódio do orangotango. Ele ironizava o chefe de polícia dizendo-o “esperto demais para ser profundo” e que sua inteligência tinha apenas cabeça, e não corpo. E no caso da carta furtada, o ministro D. tinha qualidades de poeta e de matemático, porque se tivesse apenas estas últimas estaria às mãos da polícia, que tem esse tipo de raciocínio. 
 
Uma máquina-escritora, sem a inspiração divina do Espírito, e sem um corpo (incluo aqui todos os poderes de observação empática de outros seres humanos, como no caso dos jogadores de whist), não poderia ter a fagulha poética, criadora. Seria um mero mecanismo re-arranjador de frases previsíveis. 
 
O smartphone me dá um aviso vibratório e inicia a contagem regressiva de dez minutos. Ergo-me, despeço-me dele, desejo-lhe um dia produtivo de trabalho, pois não me escapou à vista, no outro extremo do sótão, a bancada coberta de folhas garatujadas, os tinteiros cheios, os porta-penas, os mata-borrões. O contrato me impede de questioná-lo a respeito do que está escrevendo, porque poderia produzir uma alteração no algoritmo. Nosso último aperto de mãos me recompensa com um olhar cálido, cheio de companheirismo. 
 
POE – Fico muito grato pela sua visita. Há tão poucas pessoas que me procuram hoje em dia. Brasil, não é mesmo?... Que surpreendente. Bem, leve consigo minhas melhores lembranças aos meus leitores de Buenos Aires.
 
BT – Tem pelo menos dois, lá, e o admiram muito.
 
A escada íngreme e a funcionária atenciosa me conduzem de volta àquela rua pacata, àquele trecho de cidade sub species aeternitatis, àquela grama que não cresce, àquele sol que não aquece, ao céu daquele corvo que não crocita nunca mais.

 









terça-feira, 27 de junho de 2023

4956) Primeiras Estórias: os temas eternos (27.6.2023)




O mês de julho é de férias pra todo mundo, menos para os free-lancers. Vou aproveitar esse mês em que muita gente fica com a agenda mais liberada e vou oferecer mais um curso online pelo Instituto Estação das Letras. A vantagem do curso online é poder captar alunos do Brasil inteiro, e mais além, se for o caso. Meu curso mais recente (“Lendo Sagarana”, março/maio) teve alunos de Pernambuco, São Paulo, Bahia, Minas Gerais, etc. 
 
Como foi grande o interesse em discutir os contos de Guimarães Rosa, farei agora em julho, todas as segundas e quartas-feiras, “Primeiras Estórias: os Temas Eternos”. 
 
A motivação principal para estes cursos é o fato de que o romance Grande Sertão: Veredas (1956), por ser a obra mais monumental do escritor mineiro, acaba atraindo a maior parte das análises, dos comentários, das leituras. Não tenho nenhuma objeção: é um desses livros inesgotáveis, cuja releitura sempre me dá prazer e proveito.  
 
Os contos de Rosa, no entanto, ficam meio jogados para escanteio, o que é um desperdício, porque são consistentemente ótimos, originais, personalíssimos. É uma obra contística incomparável, em termos de variedade, domínio da linguagem, imaginação, carga afetiva e emocional, observação perceptiva da vida brasileira, busca do significado cósmico da existência humana. 
 
No curso sobre Sagarana (1946), tivemos dez aulas: uma introdução e nove aulas sobre os nove contos do livro. O livro Primeiras Estórias (1962) tem 21 contos e seria contraproducente estender o curso até 21 aulas. Além do mais, eu não determino sozinho o formato do curso – ele precisa se encaixar na grade de programação do IEL, que realiza simultaneamente inúmeros cursos, oficinas e palestras. 
 
Vai daí que arrumei os 21 contos do mestre Rosa em oito áreas temáticas que cobrem, de modo aproximado, todas as estórias. Advirto sempre que meus cursos não são cursos acadêmicos, de minuciosa análise estilística, linguística, estrutural, etc.  Sou um leitor antes de ser escritor, e minhas palestras tentam chamar a atenção para os aspectos essenciais dos contos, e quebrar a aura de “dificuldade”, “ilegibilidade”, “hermetismo” que muita gente ainda atribui à obra de Rosa. 
 
Rosa era um erudito, um poliglota, um homem de vastas leituras, mas acima de tudo era um apaixonado pela língua portuguesa-brasileira, e pela arte de contar estórias. Levava ao pé da letra aquela máxima de “dizer as coisas velhas de maneira nova”. Escrevia se divertindo, escrevia dando gargalhadas, escrevia com a alegria de um menino-sabido que arma um alçapão de varetas para capturar um leitor. 




(ilustração: Luhan Dias)

A organização do curso (que começa na 4ª.feira, dia 5 de julho) está mais ou menos assim:
 
“Primeiras Estórias: os temas eternos”
Um estudo de alguns temas constantes na obra de Guimarães Rosa, com a leitura comparada dos contos do livro “Primeiras Estórias”.
Oito aulas, duas aulas por semana. Total: quatro semanas.
Das 19 às 21:00. Estação das Letras: (21) 99127-4088 
 
Aula 1 –  5 de julho, 4ª.feira, 19 às 21:00
A infância e suas descobertas
Contos: “As margens da alegria”/”Os cimos”, “A menina de lá”, “A partida do audaz navegante”, “Pirlimpsiquice” 
 
Aula 2 – 10 de julho, 2ª.feira, 19 às 21:00
Jagunços: violência e autoridade
Contos: “Os irmãos Dagobé”, “Famigerado”, “Fatalidade”, “Tarantão, meu patrão” 
 
Aula 3 – 12 de julho, 4ª.feira, 19 às 21:00
Viagens fantásticas
Contos: “Um moço muito branco”, “A terceira margem do rio”. 
 
Aula 4 – 17 de julho, 2ª.feira, 19 às 21:00
A alma feminina
Contos: “Substância”, “A benfazeja”. 
 
Aula 5 – 19 de julho, 4ª.feira, 19 às 21:00
Os doidos
Contos: “Sorôco, sua mãe, sua filha”, “Darandina”, “O cavalo que bebia cerveja”, “Tarantão, meu patrão”.
 
Aula 6 – 24 de julho, 2ª.feira, 19 às 21:00
O mistério da existência
Contos: “A terceira margem do rio”, “O espelho”, “Nada e a nossa condição”, “O cavalo que bebia cerveja”. 
 
Aula 7 – 26 de julho, 4ª.feira, 19 às 21:00
A arte de contar histórias
Contos: “Pirlimpsiquice”, “Partida do audaz navegante”, “O espelho”. 
 
Aula 8 – 31 de julho, 2ª.feira, 19 às 21:00
As formas do amor
Contos: “Nenhum, nenhuma”, “Sequência”, “Luas de Mel” 
 
Esta classificação é bem arbitrária, porque a maioria dos contos toca em vários destes temas, então a decisão de colocar cada num nesta “caixinha” e não em outra é apenas para facilitar a organização. 
 
Como sempre faço, utilizarei uma cópia do livro em PDF para vermos o texto na tela, quando necessário, mas reitero a minha recomendação de que todo mundo compre o livro físico. Não sei quanto está o preço na livraria. Seja quanto for, está barato. 
 
“Vida havendo e saúde não faltando”, como dizia José Saramago, pretendo no ano que vem (pois no segundo semestre deste ano tenho muitas viagens a fazer) preparar um curso semelhante. A dúvida é apenas optar entre as sete noveletas de Corpo de Baile (1956) e as quarenta historietas de Tutaméia (1967).  
 
Cada um de nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos transvivendo, sobrecrentes, disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito – o milmaravilhoso – a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso próprio falar. E como terminar?
("Pirlimpsiquice")








domingo, 25 de junho de 2023

4955) Tradutor, o herói invisível (24.6.2023)



 
Em seu magistral e enciclopédico compêndio de tradução Le Ton Beau de Marot (Basic Books, 1997), Douglas Hofstadter sugere a seguinte parábola (Cap. 13, trad. BT):
 
Aqui estão dois tostões de diálogo para vocês, o tipo de conversa que alguém pode ouvir facilmente numa grande cidade, ou num campus universitário:
 
Ele: Está sabendo? Vladimir Horowitz está na cidade, e vai dar um recital neste sábado.
Ela: Uau, vamos assistir! Me diga, ele vai tocar o quê?
Ele: Não faço idéia. Não tem a informação no cartaz. Mas vai ser uma beleza, Horowitz é sempre grande.
Ela: Ah, Horowitz! Que pianista! Posso passar a vida inteira escutando-o!
 
E agora, eis um diálogo bastante parecido, mas um que você nunca, jamais, em tempo algum vai ouvir, seja numa metrópole ou num campus:
 
Ele: Está sabendo? Gregory Rabassa acaba de traduzir mais um livro!
Ela: Uau, que notícia maravilhosa. Já está à venda?
Ele: Acho que não, mas em todo caso deve estar daqui a um ou dois meses.
Ela: Oh, sim... aliás, quem é o autor?
Ele: Não faço idéia. Não tinha essa informação no anúncio que eu li. Mas vai ser uma beleza, Rabassa é sempre grande.
Ela: Ah, Rabassa! Que tradutor! Posso passar a vida inteira lendo suas lindas frases!
 
Se você pensa que esta segunda conversa tem alguma possibilidade de acontecer... vá sonhando, amiguinho, vá sonhando.
 
A inequação armada por Hofstadter mostra muito bem as semelhanças e as diferenças entre as duas profissões. Um pianista é uma espécie de tradutor, no sentido de ser um intermediário imprescindível entre a partitura e o ouvinte. Um tradutor é uma espécie de instrumentista, fazendo com que o leitor que não lê inglês (ou coreano, ou mandarim) desfrute a experiência estética cifrada no original. (Ou quem sabe “a ilusão da experiência”, mas nem vamos mexer nesse formigueiro.) 
 
Meu amigo californiano Harry Ingham lamentava não saber escrever em espanhol. “Se eu escrevesse em espanhol”, dizia ele, “teria alguma chance de ser traduzido por Gregory Rabassa, e meu livro em inglês ficaria infinitamente melhor”. 
 
Exagero? Só um pouco. Um dos detalhes imponderáveis da tradução é a escolha de vocabulário. Muitas vezes eu coloco uma palavra que funciona bem no contexto, e me dou por satisfeito. Pode haver, porém, um sinônimo que acrescente alguma coisa à frase – uma nuance de significado, um efeito rítmico, uma conotação mais ampla... Se alguém “traduzisse” minha frase para o português, com essa alteração, eu seria o primeiro a pensar: “Rapaz, ficou muito melhor... Como isto não me ocorreu?”



Já comentei aqui no Mundo Fantasmo o livro de Rabassa, If This Be Treason (2005), em que ele comenta muitas de suas traduções da literatura latino-americana. Rabassa explica, em longos parágrafos, algumas opções de tradução do clássico Cien Años de Soledad (1968) de Garcia Márquez. O título, por exemplo: A Hundred Years of Solitude or One Hundred Years of Solitude? Ele opta por este ultimo, e explica por quê. Do mesmo modo, explica por que razão “solitude” lhe parece superior a “loneliness”.
 
Sobre o livro, aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2014/11/3666-gregory-rabassa-23112014.html
 
O tradutor é apenas um coadjuvante no show literário, mas sem a sua competência o show poderia desmoronar. Podemos imaginar um contexto futuro em que a sugestão de Hofstadter pudesse se tornar real – as pessoas comprando um livro não pelo autor, mas pelo tradutor, para fruir o trabalho do tradutor. Por que não? 
 
Ariano Suassuna, que gostava de demonstrações por absurdo, criou no Romance da Pedra do Reino (1971) o personagem Samuel Wandernes, um intelectual católico, monarquista, e nacionalista. Para Samuel, tudo que é brasileiro é superior ao estrangeiro, inclusive na literatura. No Folheto LXXVII do livro, ele diz:
 
Sou nacionalista, e, podendo, pilho os estrangeiros o mais que posso!  Para mim, Manoel Odorico Mendes é o autor dos originais da ‘Ilíada’ e da ‘Eneida Brasileira’: Homero e Virgílio são, apenas, os tradutores grego e latino dessas obras dele!  Castilho é o autor do ‘Fausto’ e do ‘Dom Quixote’, assim como José Pedro Xavier Pinheiro é o verdadeiro autor da ‘Divina Comédia’ que Dante traduziu para o italiano!

 
Exagero? Talvez, mas não podemos esquecer que Eça de Queiroz traduziu As Minas do Rei Salomão (1885) de H. Rider Haggard, tomando extensas liberdades com o texto original (o protagonista Allan Quatermain, por exemplo, vira “Alão Quartelmar”), numa verdadeira adaptação – tanto assim que este volume é habitualmente incluído nas edições das obras completas de Eça. É um dos livros de juventude de Ariano, e não é difícil ver aí uma fagulha inicial da megalomania nacionalista de Samuel Wandernes.   
 
Há muitos casos de tradutores que cedem à vaidade de aparecer mais do que o autor, de mexer no texto do autor. Às vezes por pressa e impaciência: já li romances policiais traduzidos por Monteiro Lobato em que ele pulava páginas inteiras de descrições de ambientes (a mansão do milionário, etc.), o que às vezes deixava a narrativa até mais leve e mais rápida. (Mas não aconselho ninguém a fazer isto.)
 
Recentemente estourou na imprensa um pequeno escândalo relativo a uma tradução para o inglês de um romance de Machado de Assis, quando um professor norte-americano verificou que a edição que ele usava em aula era mais completa do que a dos seus alunos, onde capítulos inteiros tinham sido suprimidos.
 
Isto não é nada diante da façanha de William Julius Mickle, que em 1776 fez uma tradução de Os Lusíadas de Camões, e teve a cara-de-pau de incluir uma batalha marítima que não existe no original.
 
Veja aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/05/1041-os-lusiadas-em-ingles-1872005.html




quarta-feira, 21 de junho de 2023

4954) Primeiras Estórias: "Tarantão, meu patrão" (21.6.2023)



(João Guimarães Rosa)

A figura do doido é recorrente na obra de Guimarães Rosa, mas talvez fosse melhor dizer de um jeito diferente. Não é o doido propriamente dito, mas o personagem de comportamento amalucado. Não é o doido trancafiado no Pinel ou na colônia. É aquele camarada, meio vagueante do juízo, parado no ponto de ônibus, contando pra ninguém uma história que ninguém entende.  
 
O “doido solto”, como se dizia em Campina – o indivíduo que não vale a pena levar para o Manicômio, porque na verdade não é uma ameaça a si mesmo nem a ninguém. Uma figura imprevisível, que à gente às vezes tolera, mas com desconforto, porque sabe que de um instante para outro ele pode aprontar um surrealismo qualquer.  
 
Comentei dias atrás o conto “Darandina”, onde essa dualidade é pretexto para Rosa contar a história divertida do sujeito que entra no hospício, pede para ser internado alegando doidice, e, diante da negativa, volta para a rua, sobe numa palmeiras e lá em cima tira toda a roupa, jogando-a na multidão que se formou. Era doido ou não era?     
 
Algo parecido se dá com o penúltimo conto do livro, “Tarantão, meu patrão”, cujo narrador, conhecido por “Vagalume”, tem como patrão um fazendeiro que anda meio destrambelhado do juízo. A família o confinou na fazenda para esperar um médico, mas no abrir do conto o fazendeiro – “Iô-João-de-Barros-Diniz-Robertes!” – já está montando a cavalo e partindo, obrigando o pobre Vagalume a montar também e ir atrás. 
 
O patrão está “sem paletó, só o todo abotoado colete, sujas calças de brim sem cor, calçando um pé de botina amarela, no outro pé a preta bota; e mais um colete, enfiado no braço, falando que aquele era a sua toalha de se enxugar.”  Mas sua demanda preocupa: ele diz a Vagalume que está indo à procura do Magrinho para matá-lo. O Magrinho é o médico, sobrinho-neto dele, que dias atrás lhe aplicou uma lavagem intestinal. 
 
O patrão sai demente a cavalo, e Vagalume atrás, e ele alvoroça tudo por onde passa, seja porque já o conhecem, seja porque seus modos chamam a atenção. E ele vai convocando indivíduos para segui-lo. Faz gentilezas à mãe de um, conclama outro, faz discursos, e aos poucos a sua cavalgada vai crescendo. 
 
Que poder têm os doidos para atrair as pessoas? Não é qualquer doido, é o doido eloquente, porque essa combinação de imprevisto e veemência parece seduzir as pessoas que estão cochilando com a mesmice da vida. E ele vai de lugarejo em lugarejo. Desmancha uma procissão jogando dinheiro pro alto (“...a se curvar, o povo, em gatinhas, para poderem catar prodigiosamente aquela porqueira imortal”). E o séquito vai aumentando. 




As aventuras do Patrão são variadas, e nas mãos de um prosador com outro perfil renderia talvez um romance divertido como O Grande Mentecapto (1979) de Fernando Sabino. Vagalume segue o patrão como Sancho seguia o Quixote, sempre de olho, para que não se meta numa encrenca grossa. E ele também se entusiasma com o inédito daquilo: 
 
Todos vindos, entes, contentes, por algum calor de amor a esse velho. A gente retumbava, avantes, a gente queria façanhas, na espraiança, nós assoprados. A gente queria seguir o velho, por cima de quaisquer idéias. (p. 164)
 
O furor vingativo do velho não arrefeceu:
 
Ao que o velho sendo o que era por-todos, o que era no fechar o teatro. “Vou ao demo!” bramava. “Mato o Magrinho, é hoje, mato e mato, mato, mato!” – de seu sobrinho doutor, iroso não se olvidava. Súspe-te!  (p. 164)
 
Vagalume cavalga ao lado dele, e o tropel compassado dos cavalos vai fazendo brotar no texto a sugestão do título:
 
Me passei para o lado do velho, junto – tapatrão, tapatrão... tarantão... tarantão... e ele me disse: nada. Seus olhos, o outro grosso azul, certeiros, esses muito se mexiam. Me viu mil. “Vagalume!” – só, só, cá me entendo, só de se relancear o olhar. “João é João, meu Patrão...” Aí; e – “patrapão, tampantrão, tarantão…” (p. 164)
 
E assim segue a cavalgada, entre epopéias e onomatopéias, o grupo aumentando, até Vagalume se dar o trabalho de listar os “combatentes”, um prazer a que Riobaldo Tatarana se entrega várias vezes no Grande Sertão: Veredas:
 
E eu ali no mei. O um Vagalume, Dosmeuspés, o Sem-Medo, Curucutu, Felpudo, Cheira-Céu, Jiló, Pé-de-Moleque, Barriga-Cheia, Corta-Pau, Rapa-pé, o Bobo, o Gorro-Pintado, e o sem-nome nosso amigo.
 
E é essa “estranha cavalgada” que irrompe na casa do Magrinho, o sobrinho-doutor. E vejam só – a casa está em festa! É o dia do batizado da filha do Magrinho, e tudo ali é uma alegria só. Chega de repente esse Exército Brancaleone, empoeirado, suado, em bater de cascos e tinir de esporas. No meio a incerteza e da surpresa geral, o Patrão pede a palavra!
 
Todos, em roda de em grande roda, aparvoados mais, consentiram, já se vê. Ah, e o Velho, meu Patrão para sempre, primeiro tossiu: bruba! – e se saiu, foi por aí embora a fora, sincero de nada se entender, mas a voz portentosamente, sem paradas nem definhezas, no ror e rolar das pedras. Era de se suspender a cabeça. Me dava os fortes vigores, de chorar. Tive mais lágrimas. Todos, também; eu acho. Mais sentidos, mais calados. O Velho, fogoso, falava e falava. Diz-se que, o que falou, eram baboseiras, nada, idéias já dissolvidas. O Velho só se crescia. Supremo sendo, as barbas secas, os históricos dessa voz: e a cara daquele homem, que eu conhecia, que desconhecia. (p. 166) 
 
A festa termina assim em festa (Vagalume confirma: “Com alegria. Não houve demo. Não houve mortes”) e o conto se instala numa outra vertente da obra de Rosa, não muito comentada, mas presente. Como a define Paulo Rónai, em seu prefácio, “Os Vastos Espaços”, ao livro de Rosa: “o conflito esperado deixa de se cumprir”

Rónai identifica essa tendência dramática igualmente em “Famigerado”, “Os irmãos Dagobé”, “O Cavalo que Bebia Cerveja”, “Luas-de-Mel” e “Darandina”. 
 
Rosa é conhecido pelo sopro épico de suas batalhas de jagunços, seja nos duelos homem-a-homem, seja nos combates tropa-a-tropa. Nestes contos, no entanto, posteriores ao Grande Sertão, emerge o outro lado – o Rosa diplomata, o Rosa conciliador e negociante, o Rosa de sorriso zen-melífluo, o demarcador de fronteiras mutuamente concordadas, um homem com a preocupação-de-ofício de agüar os conflitos antes que eles peguem fogo.
 
Em “Tarantão”, ficamos sem saber o que o Patrão queria de fato – se ia mesmo matar o Magrinho e se comoveu ao ver o batizado – ou se tudo aquilo era esperteza prévia para alvoroçar meio sertão e arrebanhar uma “cruzada” de gente apanhada-a-laço. Mas tem quem possa sber o que um doido pensa?  Só se for doido também. Como o autor do conto (controladamente, estudadamente, bonacheiramente) devia ser.



(O último curso deste ano; quem se interessar se apresse)
 




domingo, 18 de junho de 2023

4953) "Impressões da Alta Mongólia" (18.6.2023)



 
O clown surrealista Salvador Dali estreou no cinema como parceiro de Luís Buñuel (Um Cão Andaluz, 1928; A Idade de Ouro, 1930). Os dois brigaram, mas paralelamente a sua milionária carreira como pintor, Dalí continuou fazendo breves incursões pelo cinema.
 
Uma obra curiosa, que está disponível no YouTube, é Impressions de L’Haute Mongolie (1975, Salvador Dalí e José Montes-Baquer). É um média-metragem de cerca de 50 minutos (parece que há uma versão mais longa nas cinematecas), narrando, com imagens produzidas pelo pintor, uma excursão fantasiosa à Mongólia, uma Mongólia onírica, muito diferente da Mongólia real. 

Aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=ZJk-DzMvVzE&ab_channel=BreconWalsh

A premissa fantasiosa do enredo parte do quadro de Vermeer A Carta. Nele, uma mulher de pé, num pequeno aposento, lê uma carta, tendo ao fundo um quadro. A câmera explora os detalhes da pintura enquanto Dali – no seu melhor estilo de voz bombástico-profético – explica que este quadro encerra um mistério. Essa carta, na verdade, traz para a mulher da pintura a notícia da existência de uma ilha misteriosa na Alta Mongólia, ilha cuja localização está revelada precisamente no mapa que aparece ao fundo. E o segredo principal desta ilha é que nela crescem cogumelos alucinatórios enormes, que a expedição narrada por Dali se prepara para ir buscar. É (diz ele) “um LSD sem LSD”.  
 
Seguem-se imagens borradas, abstratas, fortemente coloridas, saturadas de cor; Dali narra as justificações teóricas da viagem (sempre num discurso alucinatório-pomposo) e por volta dos 25 minutos começam a surgir as aeronaves de que ele se vale para o trajeto – trucagens meio amadorísticas com pequenos objetos que lembram cápsulas espaciais. 
 
O filme é bastante hábil em mostrar imagens coloridas e abstratas enquanto Dali descreve as paisagens com tranquila e peremptória subjetividade, quase como se estivesse lendo ali manchas de cartões Rorschach de testes psicológicos. Ele mostra "falésias", “colinas”, “florestas”, as areias brancas de uma praia que (segundo ele) não são mais do que milhares de gigantescos cogumelos alucinógenos pulverizados.
 
A imagem não é das melhores (é um filme para TV, e a cópia no YouTube parece ser tirada em VHS) mas nos permite ver exemplos do famoso método da “paranóia-crítica” teorizado e praticado por Dali. Uma mesma imagem pode ser vista de diferentes maneiras.  Dali e o diretor Montes-Baquer empregam as fusões e desfoques para fazer transições lentas de uma imagem para outra, e, frequentemente, de imagens abstratas para reproduções figurativas das cenas que a voz de Dali está narrando. Como se aquele borrão de cores e formas fosse ganhando significado pouco a pouco, pela imposição hipnótica da voz do narrador, que nos “ordena” o que devemos ver, e logo em seguida a imagem lhe obedece. 

 
Na sequência final, Dali traz o filme bruscamente para as ruas da cidade (talvez Port Lligat, onde ele tinha sua casa e seu estúdio), desfila pela rua com trajes extravagantes, parando o trânsito, varando o empurra-empurra da multidão, seguido por manifestantes que conduzem faixas e cartazes. Depois, todos pegam mangueiras e começam a lançar jatos de tinta colorida sobre uma parede. A imprensa filma, fotografa. Dali empunha uma câmera e filma também. 
 
Pode ser um subgênero do Fantástico, ou do Insólito. Posso chamá-lo de “As Expedições Mirabolantes”: histórias onde um grupo de indivíduos parte de uma grande cidade rumo a um lugar remoto e obscuro, em busca de um objetivo misterioso, ou improvável, ou fantasioso, ou irrelevante... 
 
Um retrato mental e poetizado do sonho colonialista, só que aqui visto pelos olhos, não dos homens ambiciosos de riqueza e poder, mas do buscadores do insólito, do aventuresco, do imprevísivel. 
 
Entram nessa faixa obras como Le Mont Analogue (René Daumal, 1952), Conversions (Harry Matthews, 1962), La Vie mode d’emploi (Georges Perec, 1978), bem como o filme A Montanha Sagrada (Alejandro Jodorowski, 1973) e o romance brasileiro O Púcaro Búlgaro (Campos de Carvalho, 1964). 
 
Estas “expedições iniciáticas” são um capítulo peculiar da literatura do Colonialismo. Não se voltam para a tarefa ufanista e civilizatória do homem branco, seja para celebrá-la, como Kipling, seja para mostrar, como Joseph Conrad, seu fracasso (ou sua verdadeira natureza). O livro brasileiro, aliás, é uma sátira a essas empreitadas fantasiosas. 
 
Julio Verne tem um papel intrigante neste processo. Por um lado, é um cientista da era vitoriana (mesmo sendo francês), deslumbrado com os desdobramentos da Revolução Industrial e o pipocar simultâneo de centenas de descobertas científicas em seu tempo.
 
Por outro lado, é curioso ver como a obra de Verne é insistentemente estudada, na França, em função de uma segunda leitura, uma leitura ocultista, hermética, iniciática, em que as aventuras geográficas de seus heróis são alegorias de aventuras espirituais de caráter místico. Ele poderia ser, nesta leitura enviesada, agrupado junto aos demais autores das “Expedições Revelatórias” em que europeus partem para terras distantes ou imaginárias para elucidar questões enigmáticas, obsessivas ou meramente absurdas. 
 
Quando Salvador Dalí, em Impressões da Alta Mongólia, explica que foram a esse local exótico em busca de cogumelos alucinógenos, ele expande a tradição de Daumal, e a tradição de Raymond Roussel (Impressions d’Afrique, 1910; Locus Solus, 1914), a quem seu filme é dedicado. 



(Imagem de Raymond Roussel no filme de Dali)

 
E ao mesmo tempo está expandindo, na direção da cultura psicodélica e lisérgica dos anos 1970, o próprio Surrealismo francês do qual surgiu. 
 
É curioso que as pesquisas mentais de André Breton e dos outros surrealistas tenham mantido sempre uma distância prudente em relação às drogas. Sarane Alexandrian, em Le Surréalisme et le Rêve (Gallimard, 1974), comenta: 
 
Há portanto uma certa condenação da droga entre os surrealistas, baseada na convicção de que um homem que a emprega não tem confiança verdadeira nas generosas virtudes do surrealismo. (...) Os surrealistas não tecem louvores à droga, mantêm distância em relação a ela, e preferem ver os drogados como sonhadores mal sucedidos, que não conseguem sonhar senão sob o efeito de produtos tóxicos, ainda que fosse abusivo interditar-lhes esse uso. (p. 162-165, trad. BT) 
 
O Surrealismo explodiu como movimento avassalador na Paris da década de 1920, quando as drogas visionárias (não necessariamente alucinógenas) eram o ópio, o láudano e o absinto.  
 
William Burroughs, um filho bastardo do Surrealismo francês com a ficção científica dos EUA (J. G. Ballard foi outro) rumou para a América do Sul em busca do yagé, a poção miraculosa propiciadora de visões. Essa peregrinação lhe rendeu um livro, as Cartas do Yagé (L & PM, trad. Bettina Becker). 
 
Antonin Artaud, surrealista-raiz, foi igualmente para o México em 1936 em busca do peiote, dos xamãs, do retorno ao inconsciente coletivo. Uma viagem que décadas mais tarde ganharia uma versão popularizada e transformada em best-seller por Carlos Castañeda. 
 
A Mongólia de Salvador Dalí não é tão imaginária assim; é uma Mongólia mental, uma Pasárgada alucinógena, um Eldorado do inconsciente. Um permanente “convite à viagem” que a literatura, a poesia e o cinema de espírito romântico, ou neuromântico, reiteradamente escutam e repetem, como se soubessem que a Verdade não está no centro, e sim nas periferias. 
 
 







sexta-feira, 16 de junho de 2023

4952) Não dizer dizendo (15.6.2023)



Poesia se faz com palavras, ou com idéias?  Para alguns, a idéia vem primeiro. O poeta tem uma noção mais ou menos clara do que quer dizer, e procura as palavras mais adequadas para reproduzir o que está pensando.  Para outros, o poema pode até começar com uma idéia, mas ela produz um processo de palavra-puxa-palavra, e o sentido vai se formando meio de improviso, à medida que as palavras se ajustam umas às outras.  Poetas usam esses dois sistemas desde que o mundo é mundo.  Um teste que muitas vezes funciona é ver se o poema resultante é fácil ou difícil de traduzir.  Os poemas criados a partir de idéias são, em geral, mais fáceis (ou menos difíceis!) de traduzir do que os que são feitos a partir das palavras.

 

Qualquer idéia pode ser recriada através das palavras?  Alguns filósofos dizem que só pensamos de fato aquilo que conseguimos exprimir, mesmo que seja inventando palavras que não existiam antes.  E até mesmo a incapacidade de dizer pode ser dita, a incapacidade de criar poesia pode ser recriada poeticamente.

 

Manuel Bandeira, ao fazer uma dedicatória para uma leitora chamada Sacha, escreveu:

 

Sacha muchacha

nariz de bolacha!

(Meu estro não acha

outra rima em acha.

Por isso se agacha,

se cobre de graxa,

se arranha, se racha,

se desatarracha

e pede em voz baixa

desculpas a Sacha).   

 

É um poemazinho de circunstância (do livro Mafuá do Malungo), sem maior pretensão literária, mas mostra de maneira claríssima a mais importante das lições poéticas: mesmo quando achamos impossível dizer o que queremos, sempre existe uma maneira de dizê-lo.  O poeta confessa (ou finge confessar) sua impossibilidade de achar rimas para o nome da pessoa a quem dedica o poema, mas no momento mesmo de admitir essa derrota as rimas parecem cair do céu, e o poema está feito.

 

Num tom diferente, quase trágico, Augusto dos Anjos produziu um soneto em que reflete sobre o processo de criação da poesia, “A Idéia” (1909):

 

De onde ela vem?! De que matéria bruta

vem essa luz que sobre as nebulosas

cai de incógnitas criptas misteriosas

como as estalactites duma gruta?!


Vem da psicogenética e alta luta

do feixe de moléculas nervosas,

que, em desintegrações maravilhosas,

delibera, e depois, quer e executa!

 

Vem do encéfalo absconso que a constringe,

chega em seguida às cordas do laringe,

tísica, tênue, mínima, raquítica ...

 

Quebra a força centrípeta que a amarra,

mas, de repente, e quase morta, esbarra

no mulambo da língua paralítica.

 

A descrição é poeticamente correta: a idéia brota no cérebro, mas quando queremos transformá-la em palavras ficamos mudos.  Em outro soneto (“O martírio do artista”) ele compara o poeta ao paralítico (ou, em nossa linguagem de hoje, à pessoa que sofreu um AVC) e não consegue falar:  “É como o paralítico que, à míngua / da própria voz e na que ardente o lavra / febre de em vão falar, com os dedos brutos / para falar, puxa e repuxa a língua, / e não lhe vem à boca uma palavra!"   

 

Há um elemento dolorosamente biográfico na concepção destes poemas. Sabe-se que o pai de Augusto, o Dr. Alexandre, sofreu um derrame e ficou “paralítico e afásico”, impossibilitado de se comunicar.

 

As imagens de Augusto são poeticamente fortes, são impressionantes, mas para sermos honestos temos que admitir que a culpa não é da língua.  Não é ela que forma as palavras, é o cérebro, o mesmo que forma as idéias.   E que compõe versos como estes, dizendo, de maneira brilhante, o quanto é difícil dizer.

 

Voltando mais atrás no tempo, temos um soneto de Olavo Bilac, “Inania Verba” (em Alma inquieta, 1902), no qual o de Augusto parece ter se espelhado. 

 

Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,

o que a boca não diz, o que a mão não escreve?

— Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,

olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava...


O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava;

a Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...

E a Palavra pesada abafa a Idéia leve,

que, perfume e clarão, refulgia e voava.


Quem o molde achará para a expressão de tudo?

Ai! quem há de dizer as ânsias infinitas

do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta?


E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?

E as palavras de fé que nunca foram ditas?

E as confissões de amor que morrem na garganta?

 

É um soneto sem a complexidade dos termos empregados por Augusto, com uma linguagem de clareza cristalina, onde os contrastes de idéia se dão por semelhança de forma (escrava / escreve) e por imagens visuais de apelo instantâneo (turbilhão de lava / sepulcro de neve).  Aqui, o poeta se queixa de outras coisas, que talvez não tenha conseguido exprimir, e que sugere nos dois tercetos finais.  Mas ao queixar-se o faz mostrando domínio completo da forma, do vocabulário, do ritmo (a repetição de “mudo”).  O seu final, ao falar naquilo que “morre na garganta” pode até ter sugerido a Augusto a imagem das “cordas da laringe”.

 

Cada poeta tem seu espírito, seu temperamento, e isto fica visível quando eles escolhem suas idéias, e, quando escolhem a mesma idéia, nas suas escolhas de palavras.  Cada um de nós tem sua maneira própria de dizer as coisas, e também de dizer que não consegue dizê-las.   Há momentos em que a poesia é apenas um sentimento que nos toma de assalto, nos invade, nos deixa cheios de emoções – e vazios de palavras.   Talvez a gente não consiga dizer o que sente; mas precisa dizer que não o conseguiu.   Carlos Drummond de Andrade, distante da linguagem expressionista e científica de Augusto dos Anjos, e do formalismo rígido e impecável de Bilac, encontra na simplicidade da dicção modernista recursos para falar dos seus próprios momentos “sem palavras”, quando diz em “Poesia” (Alguma poesia, 1930) :

 


Gastei uma hora pensando num verso

que a pena não quis escrever.

No entanto ele está cá dentro

inquieto, vivo.

Ele está cá dentro

e não quer sair.

Mas a poesia deste momento

inunda minha vida inteira.

 

Grande poeta não é o que sente grandes emoções.  Qualquer pessoa é capaz de emoções intensas.  O grande poeta é aquele que fotografa essas emoções, ou, mesmo quando não as fotografa a tempo, consegue captar sua sombra, sua pegada ou qualquer sinal de sua presença.  Como ele diz, no final do seu “Canto esponjoso”:

 


Vontade de cantar. Mas tão absoluta 

que me calo, repleto. 

 

 

 

(Uma versão deste artigo foi publicado no número de outubro de 2008 da revista “Língua Portuguesa”, da Ed. Segmento (São Paulo)