Na ciência da Guerra existem incontáveis alçapões onde o
indivíduo pisa quando menos espera... e é precipitado no abismo das situações
sem volta.
O problema filosófico mais importante não é o suicídio,
como sugeriu Albert Camus, mas a guerra. Quando mais não seja, porque: 1)
movimenta bilhões (talvez trilhões) de dólares sem parar, o tempo inteiro; 2)
consome milhões de vidas; 3) produz mudanças irreversíveis no mundo inteiro.
Seria possível conciliar os dois conceitos dizendo: “O
problema filosófico mais importante é o suicídio, especialmente a guerra, que é
o suicídio da espécie humana”.
Ou, como disse inesquecivelmente Augusto dos Anjos, no
erguer-das-cortinas da Primeira Guerra Mundial:
É a obsessão de ver sangue, é o instinto horrendo
de subir, na ordem cósmica, descendo
à irracionalidade primitiva...
É a Natureza que, no seu arcano,
precisa de encharcar-se em sangue humano
para mostrar aos homens que está viva!
(“Guerra”, 1914)
Minha geração só conheceu a guerra através de livros e
filmes. Cabe à minha imaginação dizer o que é a vida quando sabemos que o mundo
está sendo destruído brutalmente ao nosso redor.
Os romanos diziam: Si
vis pacem, para bellum. Se você quer viver em paz, prepare-se para fazer a
guerra. Porque (subentende-se) alguma coisa precisa ser resolvida pela
violência, antes que a paz possa reinar.
E também é um alerta: você tem, sim, o direito de viver
em paz, desde que possa entrar em guerra assim que for necessário. Ou seja, se já
tiver pessoas treinadas, tiver armamentos, planejamentos, estratégias do tipo “Se nos invadirem assim-assim, reagiremos fazendo
assim-assado”.
E aí entra um dos problemas da paz. Porque mesmo quem
vive num país estável e numa nação pacífica não está a salvo de uma guerra que
venha de fora, uma guerra de invasão. O povo é pacífico, mas precisa se
preparar para o pior. Ele se prepara para o pior; gasta oceanos de dinheiro
comprando armas e treinando soldados. Fica pronto para o pior. E aí... começa a
ficar impaciente porque o pior está demorando demais.
O mecanismo da guerra começa com a preparação, e quem se
prepara para a guerra começa a ficar impaciente para que ela comece logo.
É este um dos temas do filme O Deserto dos Tártaros (”Il deserto dei Tartari”, 1976) de Valerio
Zurlini. Baseado num livro famoso de Dino Buzzatti (que ainda não li), ele
conta o dia-a-dia de um posto avançado do exército de um país vagamente
equivalente à Itália, à beira do deserto. Aqueles oficiais e soldados estão
estacionados num Forte onde Judas perdeu as botas, esperando um inimigo que
nunca vem.
Enquanto isso, os soldados ociosos descarregam uns sobre
os outros a raiva, a impaciência, a irritação, a agressividade acumulada ao
longo daquela guerra que nunca acontece.
Jacques Perrin é o oficial jovem que chega lá, inocente e
deslocado, e aos poucos vai se enredando na teia de intrigas dos oficiais mais
velhos (Giuliano Gemma, Fernando Rey, Philippe Noiret, Vittorio Gassman,
Jean-Louis Trintignant, Laurent Terzieff, Max von Sydow, Fernando Rabal, etc.),
cada um deles um ambicioso, maluco ou criminoso em potencial.
O Deserto dos
Tártaros, livro e filme, é geralmente descrito como uma obra kafkeana, por
mostrar uma estrutura enorme e dispendiosa que existe para nada, para esperar
uma coisa que não acontece. Um exército que custa caro, financiando carreiras
profissionais de gente bem preparada. Homens para quem a guerra seria
preferível àquela expectativa constante de guerra.
“O soldado que não guerreia” é um tema espalhado pela
literatura e pelo cinema, e não creio que Dino Buzzatti e Valerio Zurlini o
tenham esgotado.
Ele aparece de forma arrepiante (e real) nos bombardeiros
mostrados por Stanley Kubrick em Dr.
Fantástico (“Dr. Strangelove”, 1966), aviões carregados de ogivas nucleares
que voam sem pousar, incansáveis, como tubarões insones, sendo abastecidos em
pleno ar, porque a qualquer momento a Guerra Nuclear pode ser decretada e eles
precisam estar perto do alvo. Qual o tripulante que em algum momento não tem um
pensamento de “Ora, foda-se, vamos acabar logo com isto!”?
E os soldados peruanos enfiados nos cafundós da Amazônia
no romance de Vargas Llosa Pantaleão e as
Visitadoras (1973)? Eternamente em guarda, esperando alguma guerra que
nunca vem, precisam ser distraídos com prostitutas. Vargas Llosa, sabiamente,
desvia a neurose na direção da galhofa satânica, como diria Pedro Dinis
Quaderna.
Quando um homem é preparado intensivamente, profissionalmente,
cientificamente, para a guerra, não se deve esperar muita coisa dele em tempo
de paz. O que fazer com esses contingentes, eternamente de armas nas mãos, no
alto de uma muralha, olhando o deserto ocre e escaldante, ansioso pela chegada
dos tártaros que (reza a lenda) vêm para matá-lo?
O romance é sublime
ResponderExcluirExcelentes, livro e filme. O primeiro filme do Herzog, Sinais de Vida, também trata de um regimento Alemão sem nada para fazer na Grécia durante a segunda guerra. No final, um deles pira e explode o paiol em fogos de artifício. Lindo
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