(Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa)
A língua brasileira tem umas coisas engraçadas. A
primeira delas é que começou sendo “Língua Portuguesa”. Era assim chamada na
época em que eu comecei a frequentar a escola, ou seja, quando os dinossauros
dominavam a Terra. Mas... Meu pai era viciado em palavras-cruzadas e charadas; eu
passava dias e noites folheando as dezenas de dicionários que ele tinha em
casa, e sempre me chamou a atenção haver um Pequeno
Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, cujo propósito eu já era capaz
de entender e aceitar.
Era uma língua traduzida para outra língua quase igual.
Portugal, no entanto, é um amor que eu tive e vi, pelo
espelho, na distância se perder, como disseram de forma irretocável Roberto
& Erasmo Carlos. Surgiu na estrada a cordilheira dos Estados Unidos e a
língua inglesa, que tem contaminado de forma irremediável a nossa, contando com
o apoio entusiasmado de muita gente – inclusive eu.
Um debate recente é o que envolve a adoção da palavra
“assistência”, no futebol: “O gol de
Pedro foi uma beleza, mas vamos reconhecer que a assistência de Arrascaeta foi
sensacional.”
Muita gente se rebela contra isto, dizendo que na nossa
língua patriótica já existe a palavra passe e que o anglicismo é dispensável.
Bastava dizer “o passe”. Era assim que a gente escrevia no Diário da Borborema. “O gol
de Fernando Canguru foi uma beleza, mas vamos reconhecer que o passe de Assis
Paraíba foi sensacional.”
(Assis Paraíba e Fernando Canguru)
A palavra assistência, pelo que entendo, veio do
basquete. Eu já a via nas transmissões do SporTV na década de 1990, quando
passei a acompanhar o time do Chicago Bulls, no tempo de Phil Jackson como
técnico, e Michael Jordan e Scottie Pipen na quadra.
Posso estar me enganando, mas desde essa época – quando
ninguém usava “assistência” no futebol – eu via uma diferença entre assistência
e passe. O passe é quando você apenas entrega a bola a um companheiro. A assistência
(no basquete) é aquele passe decisivo, no garrafão, naquelas frações-de-segundo
cruciais quando o ataque penetra todo de uma vez e é preciso entregar a bola,
de maneira inesperada, para alguém em condições de fazer a cesta.
Nessa mesma época, anos 1990, eu não via ninguém da
imprensa do futebol chamar um passe decisivo, passe-para-o-gol, de
“assistência”. Todo mundo que eu lia dizia algo como: “No jogo de hoje da Seleção Brasileira, Rivaldo teve grande atuação; não marcou gols,
mas deu passes decisivos para os gols de Ronaldo e Bebeto”.
(Rivaldo)
Ninguém dizia “assistência”.
E aqui entra meu argumento em favor deste anglicismo. A
palavra nova é necessária (mesmo que venha de outra língua, o que não é nada
demais) quando carrega consigo uma nuance que não tem na palavra anterior. A
palavra assistência não substitui a palavra passe: ela indica um tipo
específico de passe, um tipo mais importante de passe.
É algo parecido com o que faz a gente distinguir entre
“passe” e “lançamento”. Um lançamento, no futebol, também é um passe: Fulano
entrega a bola para Sicrano. Mas é um passe geralmente a grande distância, e
que muitas vezes tem a intenção de dar início a uma jogada nova, um ataque, uma
combinação de avanço a toda velocidade e de deslocamento paralelo dos outros
jogadores, que se oferecem como opções de jogada.
“Jogador era
Gérson, que fazia um lançamento de 40 metros com a facilidade de quem atrasa
uma bola para o goleiro.” Onde se lê
“Gérson”, claro, pode-se ler também Zico, Zidane, Iniesta, Zezinho Ibiapino.
Quem descreveu de maneira exemplar a diferença entre
“passe” e “lançamento” (sem usar estas duas palavras) foi João Cabral de Melo
Neto neste poema, do livro Agrestes
(1981-1985). O “passe” é uma carta, que se entrega em mãos; o “lançamento” é um
telegrama que cruza o hiperespaço para chegar ao destinatário.
(João Cabral de Melo Neto, pelo Santa Cruz, do Recife)
DE UM JOGADOR BRASILEIRO A UM TÉCNICO ESPANHOL
Não é a bola alguma carta
que se levar de casa em casa:
é antes telegrama que vai
de onde o atiram ao onde cai.
Parado, o brasileiro a faz
ir onde há-de, sem leva e traz;
com aritméticas de circo
ele a faz ir onde é preciso;
em telegrama, que é sem tempo
ele a faz ir ao mais extremo.
Não corre: ele sabe que a bola,
telegrama, mais que corre voa.
Passe é quando
você simplesmente entrega a bola a um companheiro. Lançamento é quando você descobre à distância um companheiro
desmarcado, ou um espaço vazio, e lança ali a bola, para “precipitar os
acontecimentos”. E a assistência é,
de certa forma, o penúltimo toque antes do gol. É aquele passe (pode ser curto
ou longo) que deixa o atacante na cara do gol, com a única função de finalizar
corretamente.
(Gerson – Turma
do Roma)
Me perdoem os leitores que não curtem muito futebol. Ele
entrou neste texto como Pilatos no “Credo” ou como as pedrinhas na sopa de Pedro
Malazarte. O texto é sobre a língua, as importações da língua e o
enriquecimento da língua. Não acho que dizer “assistência” empobreça nosso
vocabulário esportivo, pelo contrário.
Uma língua busca o tempo inteiro dois objetivos opostos:
ser cada vez mais simples e precisa (para que a comunicação possa fluir sem
tropeços), e cada vez mais rica e cheia de nuances (para poder refletir a
realidade, que é assim).
Quando os “Manuais de Escrita Criativa” nos dizem para
usar palavras simples, não estão nos dizendo para só dizer coisas banais.
Fernando Pessoa disse que o poeta é um fingidor porque “chega a fingir que é
dor a dor que deveras sente”. Só usou palavras simples, e isso serviu para
ressaltar o imprevisto da idéia, a originalidade da idéia, a verdade profunda
da idéia.
(E o Brasil já chegou a um ponto em que muita gente
torcerá o nariz diante do “deveras”, dizendo que isto é “falar difícil”.
Paciência.)
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