Os professores dos cursos de idiomas costumam nos dizer
que falar numa língua estrangeira não quer dizer que a gente já a “aprendeu”.
Isso só acontece (dizem) quando a gente está pensando nessa língua, e sem ser provocado.
Ou seja – quando a pessoa espontaneamente constrói uma
frase em inglês ou espanhol, mesmo estando sozinha em casa. Porque se está no
país estrangeiro, é claro que o “aplicativo idiomático mental” fica rodando 24
horas por dia.
Ou então quando sonha na outra língua, dizem outras
pessoas. Este é mais um sinal de aplicativo rodando. Você sonha que está na Inglaterra
falando o maior inglês, ou em Buenos Aires gastando o espanhol com um
transeunte qualquer.
Ou, e isso é mais sutil ainda, você sonha que está
sozinho numa casa, aí começa a procurar o relógio perguntando a si mesmo “what time is it?”.
Isto tem interesse científico porque parece que o
aprendizado de línguas estrangeiras se espalha por partes diferentes do
cérebro.
A medicina tem casos clássicos. Um oficial inglês, na I
Guerra Mundial, foi atingido por uma explosão e perdeu parte do cérebro.
Recuperou a consciência, mas parecia ter perdido a capacidade de comunicar-se
verbalmente. Um dia, médicos falaram em francês diante dele... e ele deu um
pulo! E começou a se comunicar em francês, fluentemente. E explicou que o
inglês (sua língua natal) era agora incompreensível, mas seu francês estava “normal,
normal, normal”.
Isso me lembra Joaquim Nabuco, um dos nossos grandes
intelectuais do Império e da Primeira República. Ele reconhece, com candura e
nonchalance, que sua educação cosmopolita o deixou muito mais à vontade no
idioma de Renan do que no de Machado:
[E] dava-se um fato singular,resultado desses anos de leituras
francesas: - eu lia muito pouco o português, ainda não começara a ler o inglês
e desaprendera o alemão de Maria Stuart e de Wallenstein, com
verdadeira mágoa do meu mestre Goldschmidt. O resultado foi que me senti
solicitado, coagido pela espontaneidade própria do pensamento, a escrever em
francês. (...) [C]om efeito, não revelo nenhum segredo, dizendo que
insensivelmente a minha frase é uma tradução livre, e que nada seria mais fácil
do que vertê-la outra vez para o francês do qual ela procede.
(Minha Formação, cap. VII)
Jorge Luís Borges é outro de formação multi-idiomática.
Descendente de ingleses (avó paterna inglesa), acostumou-se a ler inglês desde
cedo.
Em casa, tanto o inglês como o espanhol eram comumente usados. (...)
Todos os livros precedentes [Mark Twain, H. G. Wells, R. L. Stevenson,
Lewis Carroll, Charles Dickens, etc.] eu
os li em inglês. Quando mais tarde li o Don Quixote no original, soou-me
como uma tradução mal feita.
(“Perfis”, Ed. Globo, trad.
Maria da Glória Bordini)
Parece esnobismo, e de certo modo talvez seja –
exibicionismo de gente com acesso a bens culturais. Em todo caso... existem populações
pobres e multi-idiomáticas em muitos lugares, lugares cheios de mistura transnacional,
como cais do porto, zona de guerra, etc. Garotos que vivem como engraxates ou
meninos-de-recados, e são capazes de conversar em 3 ou 4 línguas antes dos dez
anos.
Todas essas circunstâncias nos ajudam a desenvolver
reações verbais instintivas em diferentes idiomas. Uma pessoa martela o dedão e
solta uma praga numa língua que não fala há anos; é instintivo, corresponde a
um comando mental específico, que não passa pela alfândega da racionalidade e
da intenção.
O sonho é a mesma coisa. Borges diz, no mesmo livro,
referindo-se aos tempos em que ele e sua irmã Norah, adolescentes, estudavam em
francês, morando com os pais em Genebra:
Tornei-me um bom latinista, ao mesmo tempo que fazia em inglês a maior
parte de minhas leituras particulares. Em casa falávamos o espanhol, mas logo o
francês de minha irmã ficou tão bom que ela até sonhava nessa língua.
Algo parecido deve acontecer com crianças e jovens que
falam línguas diferentes em casa e na escola. Fernando Pessoa estudou em
Durban, e seus primeiros poemas publicados não foram em português, foram em
inglês. É legítimo supor que muitos impulsos poéticos seus surgiam
primeiramente em inglês e talvez fossem depois adaptados para a língua onde
seria mais fácil divulgá-los.
Um caso notório de bilinguismo literário é o do polonês
Joseph Conrad, que escreveu toda sua obra de ficção em inglês. Conrad era de
uma família aristocrática da Polônia, estudou francês e outras línguas, mas
consta que só se tornou fluente em inglês após os doze anos. Sempre falou o inglês
com forte sotaque e um certo artificialismo, embora de maneira escrupulosamente
correta.
Livros como Lord
Jim, O Coração das Trevas e
outros mostram um domínio admirável de uma língua que não era a sua; e na qual
ele certamente aprendeu a sonhar.
Na nota introdutória a seu livro de memórias A Personal Record, ele comenta (trad.
BT):
O fato é que a minha aptidão para escrever em inglês é tão natural
quanto qualquer outra com que eu tenha nascido. Tenho a sensação estranha e
esmagadora de que ela foi sempre uma parte integrante de minha pessoa. O
inglês, para mim, nunca foi uma questão de escolha ou de adoção. A mera idéia
de escolha nunca me passou pela cabeça. (...) Foi uma ação muito íntima e por
isto mesmo muito misteriosa para explicar. Seria tão difícil quanto explicar um
amor à primeira vista. (...) Se eu não tivesse escrito em inglês, não teria
escrito absolutamente nada.
Fico imaginando se na Polônia, um país tantas vezes
invadido, retalhado, repartido, despojado de sua identidade histórica e
geográfica – se num país assim os seus nacionalistas mais ferrenhos veem a
opção anglófona de Conrad como um sinal de entreguismo, como uma rendição
humilhante a um poder colonial mais forte (neste caso, no campo da língua e da
cultura).
Intrigante. Adorei descobrir o blog!
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