sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

4909) A arte feita pelas máquinas (3.2.2023)



 
O primeiro parágrafo do conto de James Blish, “A Work of Art” (1956) é assim:
 
Instantaneamente, ele se lembrou do momento em que morrera. Lembrou, no entanto, como que a dois patamares de distância: como se estivesse recordando uma lembrança, e não o evento em si; e como se ele mesmo não estivesse presente no instante em que morrera.
(trad. BT)
 
Personagens que ressuscitam (e que às vezes ressuscitam amnésicos) são comuns na ficção científica.
 
Um começo inesquecível, para mim, é o da brilhante noveleta de Kim Stanley Robinson, “A Short, Sharp Shock” (1990):
 
Quando ele voltou a si, estava se afogando.
 
Não é propriamente uma ressurreição (a história depois se revela mais complicada ainda), e em termos de verossimilhança científica perde para a arrepiante frase de abertura do romance de Greg Egan Distress (1995): 
 
– OK, ele está morto. Pode conversar com ele agora.
 
É um mundo futuro onde uma pessoa morta pode ser revivida por alguns minutos mediante uma overdose de estimulantes, que a fazem recuperar (fugazmente) a consciência, mas ajudam bastante quando é o caso (como neste livro) de um homicídio em que a vítima pode fornecer pistas sobre o criminoso. 


Para quem se interessa pelo tema, vale a pena rastrear a curiosa antologia Five Fates (ed. Keith Laumer, 1970), com 5 contos (Keith Laumer, Poul Anderson, Frank Herbert, Gordon Dickson e Harlan Ellison) que começam todos com o mesmo prólogo, a morte do protagonista, e cada história imagina sua posterior ressurreição.
 
No caso de “A Work of Art”, bastam duas páginas para entendermos o que se passa. O homem que está sendo ressuscitado é o maestro e compositor Richard Strauss (1864-1949), autor de inúmeras óperas e da famosa Assim Falou Zaratustra (1896), cuja fanfarra inicial foi usada por Stanley Kubrick em 2001: Uma Odisséia no Espaço.


(Richard Strauss)
 

Strauss é despertado por um cientista que se apresenta como Barkun Kris, “um escultor de mentes”. Depois de se certificar que o paciente está fisicamente bem, e lúcido, ele informa a Strauss que estão no ano de 2161, ou seja, 112 anos após a morte do maestro, e que houve um trabalho de reconstituição da memória e da personalidade original dele para um novo corpo, saudável e mais jovem.
 
Para se certificar de que tudo correu bem, ele faz um pequeno questionário biográfico. Quem era um indivíduo com as iniciais R. K. L., que Strauss conheceu quando regia a ópera de Viena? “Sem dúvida foi Kurt List,” diz Strauss; “seu primeiro nome era Richard, mas ele nunca o usava. Era meu assistente de palco.”
 
“Por que motivo” (pergunta o doutor) “o senhor escreveu uma nova abertura para A Mulher Sem Sombra, e doou o manuscrito à prefeitura de Viena?...” Ele responde: “Para ser dispensado do pagamento da taxa de remoção do lixo da ‘villa’ que eles me deram de presente”.
 
Bastam algumas perguntas deste tipo para confirmar que o maestro está com suas memórias intactas, e em pleno uso de suas faculdades mentais. Strauss é liberado pelos médicos, descobre que tem dinheiro suficiente para se manter com certo conforto, e que todo mundo espera que ele volte a compor e a reger. 
 
Entrega-se ao trabalho, cheio de ânimo, mas fica desconcertado com a música do ano 2161. Ele constata que a música do século 22 está infestada de compositores dodecafônicos, cujos deuses são Alban Berg, Schoenberg e von Webern; e que ali prolifera também a tendência da música estocástica, regida pelo acaso e que tem como ideal “...produzir uma música que seja ‘universal’ – ou seja, totalmente expurgada de qualquer traço da individualidade do compositor”. 
 
(Note-se que nada há de propriamente futurista neste aspecto: Blish estava satirizando a música da década de 1950. Ele era de formação erudita, e dizia detestar “os Beatles e demais coleópteros”.)


 
A sátira vem aqui, quando ele se refere a outra moda a da “science music”:
 
Este termo não refletia nada a não ser os títulos das composições, que aludiam ao voo espacial, às viagens no tempo e outros temas de natureza romântica ou improvável. Não existia nada de científico nessa música, que consistia apenas de uma colagem de clichês e de imitações dos sons do mundo natural, e na qual Strauss percebia horrorizado sua própria imagem, diluída e distorcida pelo tempo. 
 
É uma alusão mordaz à “science fiction”. Essa música colhida entre “os sons do mundo natural” lembra a obra de autores modernos como Edgard Varèse (um ídolo de Frank Zappa), do qual já possuí um LP estranhíssimo, e tudo isto me deu uma idéia que acabei glosando em meu conto “Stuntmind” (1989):
 
Outro dia, igual a todos. Estou agora nu, meu corpo gira entre os colchões de ar no interior do cilindro, estou imponderável e vertical, flutuo, descrevo giros em torno de mim, no meio do círculo de lâmpadas bronzeadoras. Nos ouvidos, fones com música documental: os sons do resgate de um galeão espanhol naufragado há cinco séculos. O ar aquecido me faz bem. São 23 horas e 14 minutos de uma noite de inverno... lá fora. 

Como será a música do futuro? Que sensibilidades deformadas, aperfeiçoadas, desviadas, recompostas, terão os nossos descendentes?... Talvez sejam capazes de apreciar um Mozart ou um Tom Jobim, mas... como serão os artistas deles, os artistas cuja música só poderia ter sido composta no tempo deles?  
 
Strauss convive de forma meio rebelde com os compositores da ISCM, a “Interplanetary Society for Contemporary Music”. Quando vai se registrar na entidade, é submetido de má vontade a testes, e ouve o funcionário referir-se aos “mestre do passado, como Shilkrit, Steiner, Tiomkin e Pearl”...  Vejo aí, no mínimo, a citação a dois compositores de trilhas sonoras de Hollywood: Max Steiner (Casablanca, ...E o Vento Levou) e Dmitri Tiomkin (Matar ou Morrer, Duelo ao Sol).
 
Strauss continua a ser um homem de seu tempo, e decide compor uma nova ópera, lançando mão, teimosamente, de um libreto de um autor do século 20 – Venus Observed (1950), de Christopher Fry.  Ele trabalha, irrita-se, decepciona-se, entusiasma-se... enfim o trabalho habitual de um compositor de ópera.



Vem a noite da estréia, salão repleto, cheio de autoridades – e ele vê nas filas da frente a nata da guilda dos “escultores mentais”, em torno de seu ressuscitador, o dr. Barkun Kris. Começa a ópera, Strauss rege com ardor, mas começa a perceber que alguma coisa não está correndo bem. 
 
E de súbito, no meio do terceiro ato, ele compreendeu.
Não havia nada de novo naquela música. Quem estava ali era o velho Strauss – porém mais fraco, mais diluído do que nunca. (...) Suas resoluções, sua determinação de abandonar os velhos clichês e maneirismos, a decisão de dizer algo de novo – tudo tinha desaparecido diante da força do hábito.
 
De certo modo essa constatação de Strauss já seria um desfecho satisfatório para o conto. Um homem pode ser ressuscitado, mas a “chama” da sua vida original é irrecuperável, etc. 
 
Blish, porém, tem um pulo-do-gato para executar diante do leitor. Porque quando as luzes se acendem e a imensa platéia fica de pé, Strauss percebe que os aplausos não se dirigem a ele, o compositor, o regente – mas ao dr. Barkun Kris, que sobe os degraus do palco e se posta ao lado do pódio e do maestro.
 
E aí se dá a revelação. Dirigindo-se a Strauss, o doutor lhe explica que ele na verdade se chama Jerom Busch, e foi escolhido como objeto daquela “escultura mental”, depois de muita pesquisa, por ser um indivíduo totalmente destituído de ouvido musical e de talento para a composição. Com base nas informações biográficas sobre Richard Strauss, a mente de Busch foi “esculpida” de modo a imaginar que era o compositor ressuscitado; e assim tornou-se capaz de compor uma ópera. 
 
A qualidade musical dessa ópera era irrelevante, secundária – porque a verdadeira obra de arte em todo aquele episódio não era a música, e sim a escultura mental. “Strauss” não era o artista. Era a obra de arte.


(James Blish)
 
O conto de Blish coloca um problema que estamos discutindo hoje com intensidade: qual o elemento humano que caracteriza a Arte?
 
Damos instruções verbais a um programa como Midjourney e em minutos ele produz uma ilustração detalhada, surpreendente. Seja boa ou má, ela em princípio não se distingue da ilustração feita por uma pessoa. Isto é arte?
 
Damos instruções ao Music LM (do Google), seja uma descrição verbal, seja assobiando um tema musical... e ele compõe trechos musicais de acordo. Isto é música?
 
Damos instruções a um ChatGPT (a ferramenta da OpenAI) e ele nos redige um artigo acadêmico (meio bobinho ainda; mas aguardem mais algum tempo), uma letra “de Bob Dylan”, um poema “de Dylan Thomas”. Isto é literatura?


 
 (chatGPT)
 
No mesmo conto “Stuntmind”, que citei acima, incluí a possibilidade (já extensamente discutida nos anos 1980) de “conversar” por escrito com computadores que utilizariam “personas” literárias:
 
Volto à Biblioteca. Sento diante de um dos micros, escolho programas ao acaso (De Assis, De Camp, De Quincey, De Sade...), troco cartas durante algumas horas.
 
Em “A Work of Art”, James Blish nos ilude o tempo inteiro, porque ao nos mostrar um Richard Strauss possivelmente ressuscitado (ou mesmo reconstituído), imaginamos que é porque esse mundo futuro quer ter em si talentos equivalentes aos talentos do passado. Precisa de obras de arte humanas, verdadeiras. E o “Strauss” produz apenas uma colagem derivativa – mais ou menos o que acusamos, hoje, nas criações do Midjourney, ChatGPT, etc. Falta o elemento humano: criador, personalizado, imprevisível.
 
Na reviravolta final, ficamos sabendo que a obra de arte que estava em questão não era a ópera escrita por “Strauss” – era a escultura mental produzida peplo dr. Barkun Kris, e esta parece ter sido plenamente satisfatória. Fez um analfabeto em música criar uma ópera de Richard Strauss, uma façanha que corresponderia ao Pierre Menard, do conto de Borges, reescrever por conta própria uma página de Cervantes. 
 
Do ponto de vista de “Strauss”, a ópera foi um fracasso. Revelou-se sem mérito, sem talento, uma simples re-arrumação mecânica dos cacoetes e truques criativos do verdadeiro Richard Strauss. Uma obra de arte frustrada, portanto.
 
Do ponto de vista do dr. Barkun Kris, a escultura mental foi um sucesso, mesmo que a ópera resultasse medíocre. E na verdade, Kris parece nem perceber (com sua mentalidade musical de 2161) que a ópera não era boa. Diante da platéia, no final, ele elogia a genialidade da personalidade “Strauss” que ele criou.
 
Ocorre, no entanto, que o falso “Strauss” percebeu que a ópera era medíocre. E nesse momento ele tornou-se equivalente ao Richard Strauss verdadeiro: um artista capaz de saber se o que produz é bom ou não. E dessa forma ele acabou fazendo da escultura mental do dr. Kris um sucesso maior do que este seria capaz de supor. Por um breve período, ele conseguiu de fato produzir alguém com a mente criadora (com a visão autocrítica) de Richard Strauss.










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