(Juan Gris, “The Open Book”, 1925)
Por que motivo a literatura de gênero (fantástico,
policial, aventura, etc.) é vista como uma frivolidade de gente imatura, e a
dita literatura realista seria (por esta mesma ótica) um privilégio dos
adultos?
A questão parece bem formulada, mas seria possível empregar
a mesma equação, com um enfoque diferente, e dizer: “Por que motivo a
literatura de gênero é um prazer reservado às pessoas de mente jovem, e a dita
literatura realista seria (por esta mesma ótica) um penoso estudo utilitário
imposto aos adultos?”.
Tudo depende do modo de qualificar os elementos da
pergunta. Mas por todo lado vigora o conceito difuso de que existem dois tipos
de literatura – um que serve aos garotos, aos adolescentes, aos que só são
capazes de absorver coisas simplórias, e outro que é mais elevado, ou mais
profundo (o ângulo varia muito), e que é reservado aos adultos, que têm maior
capacidade mental, maior cultura, maior envergadura moral para enfrentar os
grandes problemas contidos nesses livros.
Uma experiência curiosa que tive por volta dos dez ou
doze anos foi ao ler um dos meus primeiros livros de ficção científica de autor
brasileiro, que foi A Desintegração da
Morte, de Orígenes Lessa, uma coletânea de contos encabeçada pela
noveleta-título, que aliás é a única história de FC em todo o volume.
Tenho hoje a primeira edição (Rio, Empresa Gráfica “O
Cruzeiro”, 1948), com onze histórias no total; mas a que li naquela época foi
uma versão reduzida (quatro contos apenas) publicada na saudosa “Coleção
Futurâmica”, das Edições de Ouro, no início dos anos 1960.
O último conto deste volume, “Reencontro”, trata
justamente do reencontro do narrador com um dos seus amigos de infância, um
garoto chamado Julinho que no internato era conhecido como “o chorão”. Era bom
atleta, inteligente, esperto, mas chorava com facilidade. Os dois se
reencontram em São Paulo, como soldados, na Revolução Constitucionalista de
1932.
O narrador começa a lembrar os tempos de escola, e recorda
um dia em que ele próprio tentou “fazer
bullying” com o colega (este termo não aparece no livro, é claro) para
que chore, mas acaba desistindo, porque no fundo são amigos.
Tive remorso. Fingi não perceber, mudei bruscamente de interesse:
– É Sherlock Holmes?
Julinho hesitou, teve um olhar de náufrago pra o fascículo que trazia
na mão.
– Não. É Nick Carter.
– É bom? É melhor do que o Sherlock?
Os olhos de Julinho se adoçaram. Confraternizamos naquele assunto
inesperado. Ele já tinha lido todos os fascículos de Sherlock, já havia lido
dez ou doze de Nick Carter. Mas ia acabar com aquela besteira de livro
policial. Agora ia ler somente grandes escritores. Taunay, Alencar, Machado de
Assis.
Fiquei com a crista baixa ao ler isto. Naquele tempo, era
muito raro ver uma menção a Sherlock Holmes em livros alheios; mas essa
referência era ao mesmo tempo simpática e desencorajadora. Por que livro
policial seria “aquela besteira”? E digo isso sem partidarismo, porque naquela
época eu tanto lia Conan Doyle quanto o volume dos “Contos Completos” de
Machado, da Aguilar (o mesmo que tenho até hoje, todo surradinho e
aconchegante).
Era irritante essa obrigação de chamar de “besteiras”
aqueles livros de onde eu extraía tanta coisa: tanta situação nova, tanta
paisagem estranha, tanto vocabulário, tanta informação prática, tantos traços
reveladores da insondável psicologia dos adultos... Eu extraía isso tanto de
Sherlock quanto de Machado, então por que motivo um dos dois era besteira e o
outro não?!
Depois que fiquei velho dediquei-me a torcer o sentido
dessas fórmulas questionáveis. E posso refazer aquele parágrafo inicial com
outra formulação.
A literatura de gênero (ou aquilo que em inglês se chama de “romance”) atrai o leitor jovem pela
extensão e variedade dos assuntos que aborda, pagando por isto o preço de uma
certa superficialidade. Mas ela apela ao senso de aventura, ao senso de
deslumbramento diante do improvável (o sense
of wonder), à curiosidade factual pela cultura-de-almanaque, à excitação
dos perigos, mistérios, fugas e perseguições, e a todo um conjunto de
experiências mentais que para esse leitor jovem, essa leitora jovem, estão
entre as coisas mais importantes do mundo.
A literatura mainstream,
realista, aquilo que em inglês se chama de “novel”,
atrai o leitor adulto porque conta com uma certa atitude já definida diante do
mundo. É o que os críticos chamam “a literatura burguesa”, não no sentido de
uma literatura feita por gente rica, mas feita por gente que já assumiu uma
posição definitiva diante do mundo, da vida, da sociedade. Gente que não tem
mais interesse por idéias que não rendam resultados práticos em sua vida
profissional e pessoal (familiar, sexual, financeira, etc.). O realismo tem,
para esse leitor(a) uma função utilitária, aprofundadora: conhecer melhor as
sutilezas da psicologia humana e da dinàmica da ascensão social. Mas, de
preferência, nunca sugerir a existência de outros mundos, outros planos da
realidade, outros planetas habitados, etc. etc. – outros jogos com outras
regras.
Esta é uma simplificação extrema, como toda
generalização; mas existe nela um irredutível grãozinho de verdade.
Curiosamente, no mesmo ano do conto de Orígenes Lessa,
1948, o grande T. S. Eliot emitia este juízo sobre a obra de seu conterrâneo
Edgar Allan Poe:
Poe era dotado de um intelecto brilhante, isto não se pode negar; mas
ele me parece o intelecto que tem uma pessoa jovem, altamente dotada, antes da
puberdade. Sua vívida curiosidade assume formas que são os deleites típicos de
uma mentalidade pré-adolescente: maravilhas da natureza, da mecânica, do sobrenatural,
cifras e criptogramas, quebra-cabeças e labirintos, autômatos que jogam xadrez
e voos delirantes de especulação. A variedade e o ardor da sua curiosidade nos
deleitam e nos assombram, mas no final das contas a excentricidade e a falta de
coerência dos seus interesses acabam nos fatigando.
(T. S. Eliot, citado em Poe Poe Poe Poe Poe Poe Poe, Daniel
Hoffmann, Anchor Press, 1973, trad. BT)
Podem achar uma avaliação antipática, mas tudo que Eliot
diz me parece bastante justo. Poe não é somente isto – mas é tudo isto, e o
detalhe revelador está na frase final: o sisudo e circunspecto Eliot acaba se
fatigando com a imaginação desenfreada e mórbida de outro. Eliot foi um poeta e
um intelectual condenado à vida adulta, à vida burguesa, à gravata e ao cachimbo.
Era norte-americano e virou inglês, era Unitário e tornou-se Anglicano; teve
uma carreira pública e literária totalmente distinta da que teve Poe. (Quanto a
este, talvez tenha sido um adolescente até morrer aos 40 anos, com sua
fascinação pelo jogo, suas bebedeiras, suas paixões um tanto escandalosas.)
A literatura de gênero é extensa mas superficial; o
romance mainstream é limitado mas
profundo. O leitor “jovem” gosta de tentar uma grande quantidade de
experiências e vivências através da literatura; o leitor “adulto” quer se
concentrar nos aspectos sociais e psicológicos que podem ter um reflexo prático
na sua vida já estabelecida, já focada num único caminho.
Tudo isto são regras fervilhantes de exceções, é claro,
mas mesmo não que não sejam verdades estatísticas devem coresponder a
arquétipos que flutuam, pairam, esvoaçam pelas nossas vidas, e nos
identificamos ora com um, ora com o outro.
Para encerrar, uma bela imagem de Primo Levi em A Tabela Periódica (1975; Relume Dumará,
1994, trad. Luiz Sergio Henriques), no conto “Chumbo”:
Eu estava entusiasmado com a colaboração e veio-me à cabeça fazer
espelhos até com as calotas do vidro soprado, vertendo-lhes o chumbo por dentro
ou espargindo-o por fora: olhando-nos nesses espelhos, vemo-nos muito grandes
ou muito pequenos, ou ainda inteiramente deformados; esses espelhos não agradam
às mulheres mas todas as crianças querem comprá-los.
As mulheres (=os adultos) querem certezas e confirmações
a respeito de uma Realidade dentro da qual labutam e pela qual se sentem
parcialmente responsáveis. As crianças querem o improvável, o diferente, o
estranho, o bizarro, o inesperado, porque para elas o mundo está começando e as
possibilidades, como sempre, são infinitas.
Por mim, ficaria com este depoimento sincero de Fernando
Pessoa, um temperamento que via na literatura uma forma de vida e não um tema
de estudo:
Todo o
livro que leio, seja de prosa ou de verso, de pensamento ou de emoção, seja um
estudo sobre a quarta dimensão ou um romance policial, é, no momento em que o
leio, a única coisa que tenho lido.
Todos eles têm uma suprema importância que passa no dia seguinte.
(Fernando
Pessoa, O Eu Profundo)
(Fernando Pessoa, por Rui Pimentel)