Guimarães Rosa tinha uma certa fascinação pelos doidos,
pelos indivíduos meio sem juízo, fora de esquadro. Não o doido furioso,
porejando maldade: mas o doido manso, às vezes até articulado e bom
argumentador, mesmo que por linhas tortas. O doido que se comporta de maneira
aceitável, civil. Como se a gente se
encontrasse com ele para conversar, na calçada, mas cada um estivesse sendo personagem
de um filme diferente.
Talvez a melhor galeria de tais personagens esteja na
noveleta “O Recado do Morro” (em Corpo de
Baile, 1956), história de uma caravana morosa que ao longo do caminho vai
se deparando com um lunático atrás do outro, e todos eles acabam se envolvendo
com a misteriosa voz do Morro da Garça, que se vê no horizonte. A voz do morro!
Como se o morro pudesse dizer alguma coisa!
Em Primeiras
Estórias (1962) os doidos mais comoventes são os personagens epônimos do
conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, os doidos que não explicam nada: apenas
cantam na hora da partida. Comentei essa história aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/04/4566-soroco-sua-mae-sua-filha-442020.html
“Darandina”, o décimo-oitavo conto do livro, é também
sobre um doido e também, como “Sorôco...” parece evocar os tempos médicos de
Guimarães Rosa no hospício de Barbacena, onde ele sentou praça por uns tempos
na juventude.
O narrador trabalha no hospício, é um interno de plantão
por entre enfermeiros e doutores, e está de manhã cedo à porta, esperando a
entrega dos jornais, quando de dentro do hospício emerge um homem bem vestido,
a passo rápido, e dá-se então um certo tumulto quando o homem parece ter
afanado a carteira de alguém, ou quem sabe foi a caneta-tinteiro. O suposto
ladrão foge, é perseguido, mas ele vai direto rumo a uma palmeira-real,
majestosa, que há quase no meio da praça. E sobe de palmeira acima!
A multidão perseguidora se ajunta, todos de cara erguida,
e começa aí um vai-não-vai, um foi-não-foi, que o autor estica espertamente por
catorze páginas. Interrogando outro interno, o Adalgiso, o narrador fica
sabendo que apesar de ter saído do prédio do hospício o homem não era um dos
“hóspedes”, tinha ido ali apenas para pedir um favor.
Disse que era são, mas que, vendo a humanidade já enlouquecida, e em
véspera de mais tresloucar-se, inventara a decisão de se internar, voluntário;
assim, quando a coisa se varresse de infernal a pior, estaria já garantido ali,
com lugar, tratamento e defesa, que à maioria, cá fora, iriam fazer falta... (...)
Sabe quem é? Deu nome e cargo, Sandoval o
reconheceu. É o Secretário das Finanças Públicas...
(p. 138, 3ª. edição)
Estamos num território bem pertinho da Itaguaí de Machado
de Assis, com seu alienista, o dr. Simão Bacamarte, e sua Casa Verde onde
depois de muito esforço ele se resignou a encarcerar os sãos de espírito,
porque para caber os doidos era necessária a cidade inteira.
A confusão, porém, está formada, e as pessoas se agitam. Que
necessidade tem uma pessoa da classe alta de se assubir numa palmeira?
A multidão exige que o doido desça. Como resposta, ele
atira lá de cima um sapato. E depois,
outro. Grita lá de cima uma série de
palavras de ordem que talvez não pareçam tão doidas assim.
-- Viver é impossível! (pág. 140)
-- Pára! (...) Só morto me arriam, me apeiam! (...)
Se vierem, me vou, eu... Eu me
vomito daqui! (pág. 142)
-- O amor é uma estupefação... (pág. 144)
De repente, chega esbaforido o verdadeiro Secretário das
Finanças Públicas, restabelecendo a ordem no mundo. O homem da palmeira não era
uma autoridade que endoideceu; era alguém que endoideceu de pensar que era uma
autoridade, mas agora já se desveste todo. Tira calça, camisa, cueca, arremessa
de coisa em coisa... E logo está nu em pelo lá em cima.
Guimarães Rosa conta, com riqueza de detalhes
circunstanciais, essa curiosa fábula do homem que queria passar por doido e se
internar na casa de saúde para se livrar da doidice do mundo aqui de fora; e
depois, não conseguindo, foge para o alto da palmeira e se livra de toda a
roupa civil que o incomodava.
Apenas proclamou: “Viva a luta! Viva a liberdade!” - nu, adão, nado,
psiquiartista. (pág. 149)
Nu, adão, na(sci)do: a subida à palmeira é um
renascimento, a ruptura com o mundo de antes para o surgimento de um ser novo,
como a cobra que emerge da pele usada. Sem que isto implique, contudo, num
milagre qualquer que zere os seus problemas anteriores:
Estava em equilíbrio de razão: isto é, lúcido, nu, pendurado. Pior que
lúcido, relucidado; com a cabeça comportada.
Acordava! Seu acesso, pois,
tivera termo, e, da idéia delirante, via-se dessonambulizado. Desintuído,
desinfluído – se não se quando – soprado.
Em doente consciência, apenas, detumescera-se, recuando ao real e
autônomo, a seu mau pedaço de espaço e tempo, ao sem-fim do comedido. (pág. 148)
Primeiras Estórias
tem um punhado de narrativas urbanas que compõem um contraste positivo com os
cenários sertanejos habituais em Rosa. Aqui, há sem dúvida ecos de sua escala
em Barbacena, seu convívio com os doidos de lá (cujos exemplos ele cita em seus
textos). Tal como ocorreu com André Breton na I Guerra Mundial, cuidar
diariamente de doidos internados ajudou a abrir algumas portas na cabeça literária
de Rosa.
Maria Luiza Ramos tem um ótimo ensaio, “Análise
Estrutural de Primeiras Estórias” (O
Estado de São Paulo, 30-11-1968, Suplemento Literário), incluído na
coletânea Guimarães Rosa, Coleção
Fortuna Crítica, Rio, Civilização Brasileira, 1983, pág. 519.
Ali, ela faz um levantamento da frquência verbal de
termos “com que se tece o campo semântico” da prosa deste livro do autor:
(...) palavras e expressões
como esquisito, espanto, milagre, pasmo, arregalar
os olhos, estranho, assombrável, estatelo, estupefação, engano, surpresa,
estarrecer, desatinado, espavorido, aparvoado, aturdir, irreconhecer, tremer,
estremecer, encanto, enigma, confusão, sobressalto, mistério, fatalidade. (...)
[T]odas convergem para a problemática central: a falta de lógica da existência,
ou a angústia provocada pela insegurança da vida humana.
Show!!! Obrigada!
ResponderExcluirGR gostava mais dos doidos do que Ariano Suassuna? OU daria empate?
ResponderExcluirAbç
Um traço dos grandes escritores imaginativos é serem capazes de gostar dos doidos, suas ações, suas falas -- no que elas têm de impulso vital e criativo, de mente abrindo diferentes caminhos. (No caso dos dois, empate, sem dúvida.)
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