sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

4907) Primeiras Estórias: "Darandina" (27.1.2023)



Guimarães Rosa tinha uma certa fascinação pelos doidos, pelos indivíduos meio sem juízo, fora de esquadro. Não o doido furioso, porejando maldade: mas o doido manso, às vezes até articulado e bom argumentador, mesmo que por linhas tortas. O doido que se comporta de maneira aceitável, civil.  Como se a gente se encontrasse com ele para conversar, na calçada, mas cada um estivesse sendo personagem de um filme diferente. 
 
Talvez a melhor galeria de tais personagens esteja na noveleta “O Recado do Morro” (em Corpo de Baile, 1956), história de uma caravana morosa que ao longo do caminho vai se deparando com um lunático atrás do outro, e todos eles acabam se envolvendo com a misteriosa voz do Morro da Garça, que se vê no horizonte. A voz do morro! Como se o morro pudesse dizer alguma coisa! 
 
Em Primeiras Estórias (1962) os doidos mais comoventes são os personagens epônimos do conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, os doidos que não explicam nada: apenas cantam na hora da partida. Comentei essa história aqui:
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/04/4566-soroco-sua-mae-sua-filha-442020.html




“Darandina”, o décimo-oitavo conto do livro, é também sobre um doido e também, como “Sorôco...” parece evocar os tempos médicos de Guimarães Rosa no hospício de Barbacena, onde ele sentou praça por uns tempos na juventude.
 
O narrador trabalha no hospício, é um interno de plantão por entre enfermeiros e doutores, e está de manhã cedo à porta, esperando a entrega dos jornais, quando de dentro do hospício emerge um homem bem vestido, a passo rápido, e dá-se então um certo tumulto quando o homem parece ter afanado a carteira de alguém, ou quem sabe foi a caneta-tinteiro. O suposto ladrão foge, é perseguido, mas ele vai direto rumo a uma palmeira-real, majestosa, que há quase no meio da praça. E sobe de palmeira acima!
 
A multidão perseguidora se ajunta, todos de cara erguida, e começa aí um vai-não-vai, um foi-não-foi, que o autor estica espertamente por catorze páginas. Interrogando outro interno, o Adalgiso, o narrador fica sabendo que apesar de ter saído do prédio do hospício o homem não era um dos “hóspedes”, tinha ido ali apenas para pedir um favor.
 
Disse que era são, mas que, vendo a humanidade já enlouquecida, e em véspera de mais tresloucar-se, inventara a decisão de se internar, voluntário; assim, quando a coisa se varresse de infernal a pior, estaria já garantido ali, com lugar, tratamento e defesa, que à maioria, cá fora, iriam fazer falta... (...) Sabe quem é? Deu nome e cargo, Sandoval o reconheceu. É o Secretário das Finanças Públicas...
(p. 138, 3ª. edição)
 
Estamos num território bem pertinho da Itaguaí de Machado de Assis, com seu alienista, o dr. Simão Bacamarte, e sua Casa Verde onde depois de muito esforço ele se resignou a encarcerar os sãos de espírito, porque para caber os doidos era necessária a cidade inteira.
 
A confusão, porém, está formada, e as pessoas se agitam. Que necessidade tem uma pessoa da classe alta de se assubir numa palmeira?
 
A multidão exige que o doido desça. Como resposta, ele atira lá de cima um sapato.  E depois, outro.  Grita lá de cima uma série de palavras de ordem que talvez não pareçam tão doidas assim.
 
-- Viver é impossível! (pág. 140)
-- Pára!  (...)  Só morto me arriam, me apeiam!  (...)  Se vierem, me vou, eu... Eu me vomito daqui!  (pág. 142)
-- O amor é uma estupefação... (pág. 144)
 
De repente, chega esbaforido o verdadeiro Secretário das Finanças Públicas, restabelecendo a ordem no mundo. O homem da palmeira não era uma autoridade que endoideceu; era alguém que endoideceu de pensar que era uma autoridade, mas agora já se desveste todo. Tira calça, camisa, cueca, arremessa de coisa em coisa... E logo está nu em pelo lá em cima.
 
Guimarães Rosa conta, com riqueza de detalhes circunstanciais, essa curiosa fábula do homem que queria passar por doido e se internar na casa de saúde para se livrar da doidice do mundo aqui de fora; e depois, não conseguindo, foge para o alto da palmeira e se livra de toda a roupa civil que o incomodava.
 
Apenas proclamou: “Viva a luta! Viva a liberdade!” - nu, adão, nado, psiquiartista. (pág. 149)
 
Nu, adão, na(sci)do: a subida à palmeira é um renascimento, a ruptura com o mundo de antes para o surgimento de um ser novo, como a cobra que emerge da pele usada. Sem que isto implique, contudo, num milagre qualquer que zere os seus problemas anteriores:
 
Estava em equilíbrio de razão: isto é, lúcido, nu, pendurado. Pior que lúcido, relucidado; com a cabeça comportada.  Acordava!  Seu acesso, pois, tivera termo, e, da idéia delirante, via-se dessonambulizado. Desintuído, desinfluído – se não se quando – soprado.  Em doente consciência, apenas, detumescera-se, recuando ao real e autônomo, a seu mau pedaço de espaço e tempo, ao sem-fim do comedido.  (pág. 148)
 
Primeiras Estórias tem um punhado de narrativas urbanas que compõem um contraste positivo com os cenários sertanejos habituais em Rosa. Aqui, há sem dúvida ecos de sua escala em Barbacena, seu convívio com os doidos de lá (cujos exemplos ele cita em seus textos). Tal como ocorreu com André Breton na I Guerra Mundial, cuidar diariamente de doidos internados ajudou a abrir algumas portas na cabeça literária de Rosa.
 
Maria Luiza Ramos tem um ótimo ensaio, “Análise Estrutural de Primeiras Estórias” (O Estado de São Paulo, 30-11-1968, Suplemento Literário), incluído na coletânea Guimarães Rosa, Coleção Fortuna Crítica, Rio, Civilização Brasileira, 1983, pág. 519.
 
Ali, ela faz um levantamento da frquência verbal de termos “com que se tece o campo semântico” da prosa deste livro do autor:
 
(...) palavras e expressões como esquisito, espanto, milagre, pasmo, arregalar os olhos, estranho, assombrável, estatelo, estupefação, engano, surpresa, estarrecer, desatinado, espavorido, aparvoado, aturdir, irreconhecer, tremer, estremecer, encanto, enigma, confusão, sobressalto, mistério, fatalidade. (...) [T]odas convergem para a problemática central: a falta de lógica da existência, ou a angústia provocada pela insegurança da vida humana.

 






3 comentários:

  1. GR gostava mais dos doidos do que Ariano Suassuna? OU daria empate?
    Abç

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  2. Um traço dos grandes escritores imaginativos é serem capazes de gostar dos doidos, suas ações, suas falas -- no que elas têm de impulso vital e criativo, de mente abrindo diferentes caminhos. (No caso dos dois, empate, sem dúvida.)

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