BT – Monsieur Breton, estão se completando cem anos da explosão surrealista, ou da revolução surrealista, ou da revelação surrealista... Algum desses termos o satisfaz, levando em conta tudo que aconteceu?
AB – São palavras apenas, palavras que não eletrocutam mais ninguém. Toda nossa busca foi pelas palavras energizantes, as que inflamam e destroem, as palavras radioativas, tanto as que abrem a gruta de Sésamo quanto as que fazem a terra fender-se e engolir o arauto antes que ele chegue à última sílaba. Fomos esses arautos. Nossos versos eram granadas ativadas pelos olhos de quem sabia lê-los. E todos nós sucumbimos, não é verdade? Mergulhamos as mãos na lava borbulhante do inconsciente para esculpi-la, para dar-lhe formas de náiades, para fazer a lava arquejar de gozo. E descobrimos que a lava não se dobrava aos nossos desejos. Talvez tenhamos somente esculpido réplicas de nossas próprias mãos. (sorri, ergue a mão direita à luz que vem da janela) Mãos são aranhas que tecem livros.O senhor já esteve na guerra? Uma guerra não ensina coisa alguma, eis a nossa desgraça. Saímos da guerra e da vida sabendo tão pouco como quando entramos.
AB – Não! Jamais! O surrealismo, no que para ele sonhávamos, seria sempre ação, nunca reação. Nunca uma resposta; nunca uma consequência. Queríamos, como tantos outros poetas, desvirginar o labirinto do velho e metafísico mistério. O dédalo sem saída das palavras formulaicas, que mascaram a realidade, produz um véu de tule que nos permite divisar silhuetas e tomá-las pelas coisas-em-si. Nosso gesto foi um gesto de ação; de agressão, se quiser, mas sempre um gesto de enfrentar a realidade. Precipitamo-nos sobre ela com a ousadia com que um suicida se precipita contra o pavimento. A guerra serviu para nos mostrar que a vida não tinha limites. Acreditávamos (me refiro aos homens, a nossa espécie como um todo) acreditávamos na paz, na natureza; mas se aquele horror era possível, então tudo que houvesse entre esses dois extremos tinha que ser levado em conta. Inclusive o crime sem motivo, a blasfêmia sem perdão, o irracional sem beleza, o martírio sem explicações, a depravação sem prazer, a loucura sem libertação... Os descarrilamentos do espírito. A guerra me apresentou à loucura, em Nantes, onde fui enfermeiro. E aqueles homens que babavam e balbuciavam sílabas sem sentido, queixas fantasiosas, que improvisavam palavras híbridas para vomitar o indizível... aqueles homens estavam sintonizados com o tempo em que viviam. Nós, os lúcidos, fomos os perdedores daquele conflito. O surrealismo foi a convulsão de um corpo que precisava descobrir se estava vivo ainda.
AB – É preciso ter em mente que a cidade onde circulávamos era uma galeria de monstruosidades, de deformações em cera e arame, de batráquios galvanizados candidatando-se a cargos eletivos, de contrabandistas de estrume eleitos para as academias. Não há como descrever, para um sobrevivente dos séculos, a espantosa fermentação nauseabunda de ideologias bastardas em que se refocilava a Paris daquele tempo, a Paris dos andaimes sanguinolentos, das cadeiras de tribunal forradas de couro cabeludo, dos cartórios onde as penas dos necromantes eram molhadas em tinteiros de pus, das repartições públicas onde era preciso mastigar os pés de uma múmia para ter o direito de praticar felação num fuzil. Esse era o mundo normal que os Surrealistas escandalizaram, e que depois os comunistas ameaçaram dinamitar, e que os editorialistas de L’Humanité proclamaram morto um século após seu apodrecimento. Sim, nosso impulso era o de espezinhar os arquiduques, e de dirigir mangueiras de incêndio contra esses Panteões feitos de açúcar.
AB – Mas meu caro senhor, como concebe uma “nova proposta de organização social”? O entendimento que nos inquietava, que nos bouleversava, era o entendimento de que a sociedade é ao mesmo tempo um desabrochar e um desmoronar sobre si mesma, um gêiser pagão, um jato dágua que se ergue vertical e depois desaba de volta em circunvoluções semelhantes ao deste cérebro onde nada existe em linha reta, onde dois mais dois não perfazem quatro porque se trata de duas calçadas e duas moscas... Mas ainda assim é notável o esforço da humanidade em tentar produzir ritos, formalidades que deem a impressão de mundo normal. A civilização é a tentativa de reger as chamas de um incêndio. Minha ironia final é constatar que a lógica, a cultura, a ordem social, são as proposições mais absurdas, mais bizarras, mais insanas – mais Surrealistas, portanto – a que a Humanidade jamais se dedicou. Oh, sim, a última palavra é uma gargalhada. A História é escrita pelos vencedores, mas a última piada é sempre dos vencidos.
AB – Ah, Dali, aquele manequim anguloso funcionando à bateria... Sim, sei muito bem a celebridade em que se tornou, ele e seu realejo de prodígios pré-fabricados... Suas bisnagas palpitantes de esperma, seus tigres feitos de tapete, seus espectros de veludo e fumaça... Dali (como outros, aliás) é a melhor comprovação da tese surrealista de que a libertação do espírito e o contato com o plasma ardente da poesia estão ao alcance de qualquer um. Quando dizíamos que a poesia deve ser feita por todos, é porque incluíamos nessa lista os canalhas, os traidores, os mercenários, os pavões cravejados de medalhas comemorativas, os gigolôs da fortuna alheia, os estripadores, os estupradores, os enfermeiros que injetam soporíferos na língua dos pacientes... Se o Surrealismo prevalecer um dia, meu caro senhor, todos esses indivíduos serão capazes de produzir poesia de alta qualidade, porque o Espírito (que é algo muito distinto da “alma” dos cristãos), se manifesta em todas as mentes humanas. Esse é o deslumbramento e a tragédia da condição humana: que as piores pessoas que temos sejam também capazes de produzir o que temos de mais elevado, porque – esta é uma das palavras de ordem do Surrealismo – em qualquer ser humano insignificante é possível fazer desencadear os poderes originais do Espírito.
AB – Oh, não certamente. Não precisamos de outro mundo. Este mundo aqui já tem uma quantidade suficiente de ameaças, de recompensas, de prazeres, de deslumbramentos, de tragédias... O mundo é um oceano desmedido. Se mal raspamos a sua superfície, se mal tocamos a espuma de suas ondas, por que deixaríamos de mergulhar nele para tentar imaginar outro mundo, outro mar? Não, nosso mar é o mar do inconsciente humano compartilhado, temos que afundar nele de olhos escancarados para sua escuridão, temos que nos amarrar a bolas de ferro, às bolas e correntes da poesia convulsiva, do estranho, do bizarro, do inesperado. Temos que afundar no Real, quando mais não seja porque todas as pessoas que desprezamos e que nos desprezam nos dizem para fazer o contrário.
AB – Aragon era um visionário com senso de humor. Nossos caminhos divergiram, infelizmente, mas nossos corações, por assim dizer, continuam a flutuar próximos, neste oceano da impermanência. Aragon sugeriu essa idéia a Jules Romains, que a incluiu num romance. Verdade? Invenção? Eu não sei. Na época, era intensa a minha repulsa pela literatura, pela prosa de situações banais do cotidiano, pelas marquesas que saíam às cinco horas... Parecia-me uma arte inferior, comparável à do desenho de cartões de namorados ou decoração de bolos. Meus amigos viam uma perturbadora beleza nessa idéia de um fio de corredores secretos estendendo-se através de Paris – ou de qualquer outra cidade, à sua imaginação – por onde é possível caminhar sem ser visto, fugir sem ser apanhado, espionar sem ser pressentido, deslocar-se no espaço sem sofrer rastreamento...
BT – Eu pagaria por esse direito uma polpuda mensalidade, Monsieur Breton, mas a esta altura parece que tudo se circunscreve aos domínios do feuilleton, da pulp fiction...
AB – Ah, meu caro senhor, não menospreze o poder revelador, o poder encantatório das cerimônias profanas da ficção popular, da cultura das calçadas. É ali que vemos o desabrochar orgulhoso do Espírito coletivo, que, não se engane, não desce do Céu sobre nós para nos trazer lições de moral, mas emerge do asfalto, dos paralelepípedos, dos tijolos, da alvenaria, para nos trazer lições de sobrevida e transcendência. Pense em Rimbaud e seu fascínio pelo teatro de mamulengos, pense na brutalidade plebéia de Lautréamont, pense em Jarry e sua tradução da ciência para o idioma da sarjeta... Todos estes poetas acharam, cada um ao seu modo, um canal de comunicação permanente com essa correnteza obscura, maníaca, com o estado de furor, com o acaso objetivo, com as imagens convulsivas e fulgurantes, as truculências simbólicas.
Breton faz um gesto largo abarcando aquela avenida
inteira, aquele século.
AB – Eles nos odeiam, caro senhor, mas não há propósito em odiá-los. Sabem que um mundo onde possamos viver é um mundo que os ameaça. Não é a nossa vontade que determina isto, é a natureza da coisas. Até hoje o mundo foi deles. Changer la vie! – foi o brado de Rimbaud. E o faremos. Temos quanto tempo pela frente? Uns diriam mil anos; outros diriam: a eternidade.
BT – Uma última provocação. Seu amigo Luís Buñuel reconheceu certa vez que, visto em retrospecto, o Surrealismo fracassou no essencial e triunfou no que era supérfluo e secundário. O que me diz?...
AB (pondo a mão no meu ombro, num gesto paternal) – Ah, Luís?... Luís é um garanhão coroado de papoulas.
Philip K. Dick: