sábado, 15 de outubro de 2022

4873) A paisagem perturbada (15.10.2022)



 
Florença, que alguns chamam “a capital do Renascimento”, é uma cidade tão bonita que deu origem até a uma expressão, “a Síndrome de Stendhal”. Ela alude ao fato do escritor francês ter desmaiado diante da Basílica, fulminado por tanta beleza.
 
Disse o romancista:
 
Mergulhei numa espécie de êxtase, pela idéia de estar em Florença, próximo aos grandes homens cujos mausoléus eu acabara de ver. Absorto na contemplação daquela beleza sublime... Atingi um ponto em que experimentava sensações celestiais... Tudo falava de forma vívida ao meu espírito. Ah, se ao menos eu pudesse esquecer. Tive palpitações do coração, aquilo que em Berlim chamam de “nervosismo”. Minha vida foi sugada, e eu caminhava com medo de cair.
 
(Digressão: dizem que o Coronel Galdino, de Campina Grande, assim comentou este acontecimento: “Vige que home fraco, se ele ver o Açude Velho ele morre”.)
 
Uma overdose de beleza? Será possível isso? Beleza em excesso faz mal? O nordestino usa com frequência a expressão “medonho” para qualificar a intensidade de algo: “Eu fui lá em Florença, rapaz, é uma cidade bonita medonha”. Medonho é o que dá medo. É algo mais que belo: é o Sublime, um grau de beleza tão elevado que, segundo os filósofos, se avizinha do Terrível.



Estive lendo as saborosas memórias de Erico Verissimo, Solo de Clarineta (Ed. Globo, Porto Alegre), em dois volumes. No volume 2, ele narra uma viagem que fez à Europa com a esposa Mafalda e o filho adolescente, um tal de Luís Fernando. Ele próprio reconhece que foi um trajeto alucinante, percorrendo oito países e cerca de 70 localidades em três meses.
 
Ninguém aguenta. Verissimo, fascinado por arquitetura e por artes plásticas,  confessa, a certa altura:
 
[U]m ser humano pode passar uma semana inteira em jejum absoluto, mas se no domingo lhe derem um farto banquete, sua capacidade de comer terá um limite que o faminto não poderá transpor sem o risco de ter uma indigestão perigosíssima. O mesmo acontece com as viagens. (vol. 2, p. 134)
 
(Visitando a Catedral de Sevilha:) Saio psicologicamente da sala do tesouro como sairia estomacalmente dum banquete onde tivesse sido obrigado a comer um bolo inteiro com camadas de nata batida, chocolate, marmelada, doce de ovos, e todo encrustado de nozes, passas sortidas, amêndoas, confeitos... (p. 274)
 
Nesta altura da viagem, depois de ter passado pelo Museu do Prado, em Madri, e pelas galerias de Florença, devorando ávido e apressado toda uma formidável safra artística de séculos, começo a sentir tonturas e uma espécie de náusea. E todos esses quadros vistos – alguns mais nítidos que outros na memória – começam a girar ao redor de minha perplexidade como peças dum quebra-cabeças talvez impossível de armar. É provável que um observador colocado num ângulo fora do tempo pudesse ver as peças todas no seu devido lugar, formando um desenho e possivelmente uma mensagem. (p. 303)
 
É uma descrição aproximada dos sintomas que explodem na crise de Stendhal? Talvez. Overdose de beleza, desorientação perceptiva, estresse sensorial... tudo isto não coisas mais frequentes do que se imagina. Uma espécie de “festa de Babette” para os olhos (para adotar a comparação gastronômica de Verissimo). 
 
A síndrome foi estudada cientificamente pela Dra. Graziella Magherini, em La sindrome di Stendhal (1989). Curiosamente, o título foi dado a posteriori: ela estudou na verdade centenas de casos clínicos semelhantes ocorridos com turistas que visitavam a cidade, e só depois de algum tempo tomou conhecimento do episódio famoso do escritor.


É um impacto forte nos sentidos – aliás, o persistente Dario Argento, diretor de thrillers  policiais terroríficos, dirigiu em 1996 La Sindrome di Stendhal, ao que parece inspirado num episódio de desorientação mental que ele próprio experimentou na infância, quando visitava Atenas com os pais. Diz o cineasta numa entrevista, quando do lançamento do filme:
 
Meu entusiasmo se deu pelo fato de que a arte tem a função de elevar os espíritos, não de esmagá-los ou de invadi-los... Todos nós aprendemos que a arte enriquece nossas vidas. Stendhal descobriu que não é bem assim. Ela pode também nos enfraquecer. A possibilidade da arte poder causar a morte me interessou. (Internet Movie DataBase)
 
Tudo isto nos ajuda a perceber um conceito do fantástico aplicado à vida cotidiana, que agora não parece muito improvável. É a noção de que alguns ambientes podem agir concretamente sobre uma pessoa, podem provocar-lhe êxtase, ou repulsa, ou desorientação, até mesmo loucura. Nos contos de Lovecraft, encontramos com frequência descrições de “ambientes malignos” onde praticamente nada acontece, nem precisa acontecer, porque a simples visão daquele cenário de pesadelo desestrutura mentalmente o personagem.


(“Cárceres”, de Piranesi)


Jorge Luís Borges, um discreto leitor de Lovecraft, nos propõe algo parecido com a arquitetura misteriosa da Cidade dos Imortais (“O Imortal”, em O Aleph, 1949).
 
“Esta cidade (pensei) é tão horrível que sua mera existência e perduração, mesmo estando no centro de um deserto perdido, contamina o passado e o futuro, e de algum modo compromete os astros. Enquanto ela durar, ninguém no mundo poderá ser corajoso ou feliz.” Não quero descrevê-la; um caos de palavras heterogêneas, um corpo de tigre ou de touro em que pululassem, monstruosamente, conjugados e odiando-se, dentes, órgãos e cabeças, podem (talvez) ser imagens aproximativas.
 
No fundo é de um único fenômeno que estamos falando. Umberto Eco, autor de uma História da Beleza (2004), sentiu-se na obrigação de escrever uma História da Feiura (2007).
 
Em seu filme-homenagem ao escritor e viajante Bruce Chatwin, Nomad (2019), Werner Herzog resgata uma cena do seu filme de estréia, Sinais de Vida  (1968), em que um soldado alemão da II Guerra Mundial, já esgotado de cansaço, aturdido pela guerra, enlouquece de vez quando numa missão de reconhecimento se depara com um vale onde existem cerca de 10 mil pequenos moinhos de vento.
 
A imagem é real, e Herzog afirma que, ao comentar esse filme, Bruce Chatwin cunhou a expressão “paisagem perturbada” (“deranged landscape”) para registrar a impressão que ambientes assim podem produzir na mente humana.




 
 





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