segunda-feira, 3 de outubro de 2022

4869) A malbendita língua portuguesa (3.10.2022)


 
Na vitrine da livraria percebo a capa de um livro norte-americano de que sempre ouvi falar. 

É o famoso Elogiemos os Homens Ilustres (Cia. Das Letras), uma reportagem de James Agee feita nos anos 1930, em companhia do fotógrafo Walker Evans. A dupla registrou a vida dura dos norte-americanos pobres, na época da Grande Depressão.
 
O título, no entanto, é o que me fisga. O original é Let Us Now Praise Famous Men, o tradutor é o respeitável Caetano W. Galindo. Não discuto a opção do tradutor, que me parece corretíssima. Queria discutir um problema tradutório, desses que não têm nada a ver com a língua de origem, e sim com o funcionamento da língua alvo, o português-brasileiro.
 
Nossa língua é desajeitada em muitas coisas, entre elas conjugação de verbos. Tem certos tempos que o brasileiro médio não conjuga direito, e não me refiro aos seringueiros do Amazonas ou aos bóias-frias do Paraná, e sim ao brasileiro alfabetizado, que lê, que é capaz de comprar e ler um livro como o de James Agee.
 
O problema está no tempo imperativo do verbo, esse “elogiemos”. Eu sou mais ou menos um brasileiro culto e eu não falo assim. Verbo no imperativo, primeira pessoa do plural. Façamos uma experiência. Leiamos com cuidado, decoremos estas formas com precisão. Usemos isto durante algum tempo. Descontraiamo-nos; acostumemo-nos a esses escolopendros verbais.
 
Está errado usar assim? Não, eu acho que está certíssimo. O problema é que temos dois idiomas. Temos o idioma escrito, onde predomina a Norma Culta, que no meu entender deve ser respeitada, cultivada e mantida até o ano 3.000 pelo menos. E temos o idioma falado, onde cada um se vira como Garrincha se virava com as pernas que tinha.
 
O pequeno susto de estranheza que tive diante desse título (que, repito, está totalmente correto) deve ter me acontecido como reflexo de um susto, este sim, grande, abalador, que tive lá pelos meus 15 anos quando peguei na tradução de Manuel Bandeira para o Macbeth de Shakespeare.



A famosa cena inicial, das três bruxas no nevoeiro:
 
1ª. Bruxa
Irmãs, o Gato nos chama!
2ª. Bruxa
O sapo reclama!
3ª. Bruxa
Já vamos! Já vamos!
TODAS
O Bem, o Mal,
- É tudo igual.
Depressa, na névoa, no ar sujo sumamos!
 
Sumamos! Eu olhei para isso, e levei uns três segundos para entender, porque já aos 15 anos eu não falava assim. “Sumamos” era uma palavra estrangeira, uma palavra estranha. Lembrava o nome de alguma divindade sumeriana, talvez o Deus das Metempsicoses e das Abduções.
 
Por que isso tudo?  Porque nós temos duas maneiras de dizer isso, a maneira sintética (“sumamos!”) e a maneira analítica (“vamos sumir!”). O brasileiro médio (inclusive eu) prefere usar esta última, pondo na frente um verbo auxiliar, e depois o verbo principal no infinitivo. Tem muita gente que avisa em casa: “Olha, viajarei para São Paulo na semana que vem”, e está certo. Eu prefiro dizer: “Olha, vou viajar para São Paulo na semana que vem”, e também está certo.
 
Tudo na vida, como diz Maria do Rosário Caetano, depende de Nossa Senhora do Contexto. Acho natural que numa letra de bolero cantado por Nelson Gonçalves apareça: “Caminhemos... talvez nos vejamos depois...” Mas num reggae cantado por Gilberto Gil é igualmente adequado dizer: “Vamos fugir deste lugar, baby”.
 
Voltando ao livro de James Agee: o tradutor poderia tê-lo intitulado Vamos Elogiar os Homens Ilustres, ou mesmo Vamos Elogiar Agora os Homens Ilustres. Por que não o fez? Possivelmente porque achou, com razão, que o título ficaria mais longo que o necessário; e que o verbo na forma “elogiemos” ficaria mais de acordo com o tom grave e sentencioso da fonte de onde foi extraída a frase, que é um texto religioso judaico.
 
Por outro lado, veja-se que a língua inglesa usa com fluência e descontração essas formas com verbos auxiliares, tipo “Let us...”. “Let’s spend the night together!...” 

Agora imagina Mick Jagger dizendo para uma garota: “Passemos a noite juntos...”.
 
Qual é o problema, então? O problema é que certas formas de expressão, em português, podem ser gramaticalmente corretas mas contextualmente erradas, e neste caso é preciso ter um plano B. Você lê a frase em inglês, é uma frase tranquila, clara, sem nada de mais. Bota a frase em português, do jeito que a frase é... e o resultado é às vezes um mondrongo ilegível. Aquele caso tradicional do “ninguém fala assim”.
 
Me lembro dos meus tempos de banda de rock, quando a gente vivia tentando fazer versões dos clássicos do momento. A gente pegou “Try”, gravação de Janis Joplin, aquela que diz: “Try... just a little bit harder...”  E traduzimos: “Teeeente... um pouco mais arduamente...”



 
 
 
 
 





4 comentários:

  1. Muito pertinente a observação. Há de se considerar também que não é que o tradutor tenha que utilizar um verbo somente porque no original consta um verbo. Ali caberia perfeitamente um substantivo, como "Elogio aos...". Claro, fica de fora a função exortativa do original, mas pelo menos dá pra evitar essa avis rara do imperativo no plural. Por fim, não tenho certeza que o título necessariamente seja por conta do tradutor. Até onde sei, costuma ser decisão do editor.

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  2. Tem razão, Diogo. Quanto à palavra final na escolha do título, é sempre do editor. O tradutor tem a obrigação implícita de fornecer uma sugestão (ou mais de uma), e o editor decide. Na maioria dos casos, acho, ele aceita sem problemas a proposta do tradutor.

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  3. Meu inglês é aprendido a muque, com temperos do fraco inglês escolar da época. Pergunto se faria sentido meter uma vírgula ou pausa e ficar assim: Let us now praise, famous man. Se de algum modo daria o sentido de chamamento (que também não se usa muito) aos homens ilustres a elogiar os homens comuns (pobres)? Ou só me acontece de querer ver chifre em cabeça de cavalo?
    Ótimo texto, como sempre.

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