(Rio 1890, por Marc Ferrez)
Terminei recentemente a vagarosa leitura de Memórias da Cidade do Rio de Janeiro (Ed. José Olympio, 1955), de Vivaldo Coaracy. Foi grande a vontade de voltar de imediato à página 1 e começar tudo-tudo de novo, porque são milhares de fatos, explicações, relatos, transcrições e comentários sobre ruas, becos, avenidas, igrejas, praças e logradouros desta cidade. Tudo no estilo engravatado mas saboroso do historiador.
Pararam hesitantes no meio do largo. Tílburis moviam-se lentamente; de quando em quando um partia à disparada. A ronda passava vagarosa; os animais caminhavam como sonâmbulos, maquinalmente, a cabeça baixa e os soldados, derreados, iam como embebidos na luz magnífica que o astro branco vertia. O “Stadt Coblenz”, a “Maison Moderne”, o “Caboclo” regurgitavam iluminados; às portas, grupos discutiam aos berros, agitando bengalas e, mais adiante, o “Príncipe Imperial” transbordava. O povo enchia o saguão e despejava-se amontoadamente espraiando-se em direções diferentes, e as luzes do frontão do teatro extinguiram-se subitamente ficando a rua em treva. Rodavam carros abertos, bondes enchiam-se e, de longe, vozes diferentes anunciavam com furor “empadinhas de camarão”.
(...) A cidade dormia. Começavam a varrer as ruas. Uma nuvem densa de poeira empanava o brilho dos lampiões e, dentro dessa bruma espessa, dum tom alourado, moviam-se homens cantando e atirando vassouradas: carroças rodavam parando de quando em quando. Raras mulheres, debruçadas às janelas, cochilavam; tílburis passavam à disparada e os dois, em passos apressados, seguiam cosidos aos muros, com os lenços à boca. Apitos trilaram ao longe e, com estrépito sonoro, os soldados da ronda passaram a toda a brida através da poeira como dois cavaleiros fantásticos. Vinham rapazes cantando num vozeirão atroador. (Cap. 1)
Coelho Netto é vituperado hoje em dia por seu estilo churrigueresco, ou seja, ele nunca escrevia uma palavra comum se pudesse botar ali um termo alambicado, idiossincrático, abstruso. E, como todo autor que escrevia para preencher espaços, só largava um assunto quando não lhe ocorria mais nada para dizer. Há verdade nisso, mas o fato é que era um escritor sólido, bom segurador de histórias extensas, bom rabiscador de histórias rápidas. Produziu em excesso, talvez; mas sempre sabia o que estava fazendo.
Vozes atroaram o silêncio e uma célere trepidação de rebanho em marcha fez com que os rapazes parassem colando-se à parede e logo dois campeiros surgiram, a cavalo, estalando chicotes, cantarolando e, em seguida, uma boiada a trote, os animais muito juntos, em bolo, silenciosos. Os grandes chifres entrebatiam-se e homens atiravam os cavalos à calçada ou passavam por entre os mansos animais, bradando, como nos campos: “Ehôoo!... toca! Junta... êeh!...” E a manada seguia e perdeu-se na poeira dourada donde apenas vinham os gritos dos guieiros.– É o bife.– Para onde vai isso?– Para Niterói, creio eu.Um bêbado resmungava cambaleando, às guinadas. Ouviram tinidos de campainhas e uma tropa de burros desfilou, sacolejando ceirões, a caminho do mercado.“Vou-me embora... Vou-me embora!É mentira, não vou não...Se eu vou m’embora, faceira,Deixo aqui meu coração”,cantava languidamente o tropeiro escarranchado na bestinha viajeira, puxando a récua.– Pleno sertão.– É verdade. (Cap. 1)
A Conquista é um romance
histórico, levemente histórico, porque a Abolição ocorre em segundo plano. Mais
do que histórico é um romance de costumes, um romance que se volta para o modo
como as pessoas vivem, seus valores, suas expectativas, seus objetivos, suas
regras de relacionamento, etc. Para mim, além do sabor da escrita, é importante
porque retrata uma certa intelectualidade literária urbana (que Machado também
retratou em inúmeros contos) num momento crucial de transição.
Há também uma coisa muito carioca em apresentar a geografia da cidade na sua literatura. O escritor carioca é quase um guia turístico. Elaborei mais sobre essa teoria aqui: https://lisandrogaertner.net/blog/o-escritor-carioca-confinado/
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