segunda-feira, 18 de julho de 2022

4844) O livro como mercadoria (18.7.2022)



Comentei anos atrás, aqui neste blog-coluna, o livro de André Schiffrin O Negócio dos Livros – Como as Grandes Corporações Decidem o que Você Lê (Rio: Casa da Palavra, 2006, trad. Alexandre Martins).
 
Aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2011/02/2485-o-fim-do-livro-2022011.html
 
É basicamente um estudo de como as grandes editoras da Europa e dos EUA estão sendo gradualmente adquiridas e controladas por grupos que não estão nem ai para literatura ou para as artes, e querem usar o livro para alavancar a venda de outros produtos e a difusão de outras idéias.
 
(A situação atual do mundo é esta, gostemos ou não.)
 
Schiffrin nasceu na França, mudou-se para os EUA em 1941. Seu pai Jacques foi o criador da famosa Bibliothèque de la Pléiade, linha editorial francesa que publica aquelas edições chic de obras-completas em papel bíblia. (É uma forma rastaqüera de descrevê-la, diria Julio Silveira.) Nos EUA, André foi diretor da Pantheon Books e depois da The New Press, experiências que ele comenta em seu livro.
 
Aqui no Brasil, muitas grandes editoras surgiram como empreendimentos ao mesmo tempo comerciais (para ganhar dinheiro) e culturais (para debater idéias, fazer circular informações, dar acesso à vida cultural de outros povos, etc.). Muitas dessas editoras eram ligadas a grupos familiares: a família Machado na Editora Record, a família Prado na Ed. Brasilense, a família Lacerda na Ed. Nova Fronteira, a família Zahar na Ed. Zahar, e assim por diante.
 
Ou seja: as pessoas que tomavam as decisões moravam na cidade e estavam mergulhadas na vida social de sua cidade e seu país. Não eram executivos que moravam a 20 mil km da editora e muitas vezes sequer pisavam no país onde elas imprimiam seus livros.






Schiffrin diz que a tendência dessas editoras “familiares”, depois de adquiridas pelos grandes grupos internacionais, é mudar gradualmente sua linha editorial. Em vez de publicar (por exemplo) romances, contos, poesia, teatro, estudos históricos, estudos sociais, psicologia, etc., a ênfase se desloca gradualmente para livros de culinária, livros de turismo e viagens, biografias de celebridades, memórias de políticos, livros de moda, livros de auto-ajuda, livros de administração/negócios/vendas.
 
Publicam literatura? Sim. Basta um autor vender 1 milhão de cópias por outra editora e eles lhe caem em cima prometendo mundos e fundos. É como no futebol. É mais emocionante arrebatar a-peso-de-ouro o ídolo da empresa rival do que manter uma “escolinha” de autores para serem trabalhados a longo prazo.
 
Discutir isto me parece tão importante (do ponto de vista de quem escreve profissionalmente) quanto discutir a questão (também importantíssima, reconheço) “livro de papel X livro eletrônico”.
 
Porque se eu sou leitor de Fernando Pessoa, tanto se me faz lê-lo num volume impresso quanto no celular. Qual é o problema? Aqui no meu modesto Samsung eu tenho Kafka, Leminski, Virginia Woolf, Darcy Ribeiro. O problema começa quando não houver Pessoa em nenhum dos dois formatos. E isso periga acontecer um dia – talvez não com a obra de Fernando Pessoa, mas com a obra de peixes-miúdos como eu e tantos outros.
 
Algum tempo atrás compartilhei nas redes sociais uma postagem onde Octavio Aragão reproduzia um depoimento do editor Rogério de Campos (transcrevo a postagem, não sei indicar a fonte original do texto):
 
Rogério de Campos: "Por outro lado, abundam nos postos de direção do mercado editorial pessoas que não têm qualquer interesse em livros. Donos de editoras que preferiam ser donos de construtoras, diretores de marketing que trabalham em grandes editoras porque não conseguiram uma vaga na Coca Cola, livreiros que gostariam de ser executivos em empresas de tecnologia, CEOs que dariam ótimos mecânicos (mas infelizmente não sabem disso). Gente que não lê livro algum além dos manuais técnicos de seus notebooks. Nas reuniões exibem seus novos smart clocks, falam com entusiasmo das novas empilhadeiras do estoque e da nova funcionária do RH, riem dos nerds da redação e reclamam com impaciência do mimimi dos autores. Porque não têm paciência com gente que escreve livro, que edita livro, que vende livro, que compra livro e que lê livro. São chefes infelizes de gente que se sente infeliz por tê-los como chefes."
 
Os comentários na minha postagem eram todos de confirmação, e muita gente dizia: “Na música também é assim”, “no meu trabalho também é assim”. E eu acredito que seja.
 
André Schiffrin usa o conceito de “censura do Mercado” para definir esta situação, um problema crescente a cada década que passa.
 
Assim como um Estado totalitário proíbe (ou sabota) tudo que vai de encontro a sua ideologia, seja ela qual for, a censura do Mercado proíbe (ou sabota) tudo quanto for de encontro à sua, que é a Ideologia do Lucro.
 
Poderíamos chamar de capitalistalinismo essa pressão devastadora de cima para baixo em que o objetivo de um livro não é proporcionar uma experiência pessoal, mas dar lucro. No final das contas, é “a Mão Bruta do Mercado”, que espreme cérebros para fazer gotejar cifrões.


(Norman Spinrad)
 
Não é de hoje. Numa entrevista do autor de ficção científica Norman Spinrad (autor de O Sonho de Ferro, The Void Captain’s Tale, No Direction Home etc) à revista Locus (fevereiro de 1999, # 457), ele já se queixava:
 
O que há de errado com a FC, em última análise, é o que há de errado com o capitalismo dos conglomerados de corporações, em seu aspecto editorial, porque em termos de quantos livros bons estão sendo escritos todos os anos não há problema nenhum. Nos últimos dez anos temos tido todos os anos cerca de 20 a 30 livros entre bons e excelentes, e ninguém pode se queixar. O problema é que eles estão soterrados numa avalanche de porcaria cinicamente comercial. Existe uma disfunção no seio da indústria editorial, e isto acaba por afetar o que os escritores produzem.
 
Os escritores se desenvolvem sob intensa pressão editorial, de uma maneira que certamente não é a melhor para o seu amadurecimento literário. Você não escreve os livros que genuinamente queria escrever: escreve os livros que está obrigado a entregar sob contrato. É de causar medo. A indústria editorial está hoje comandada por gente com cabeça exclusivamente de negócios. O poder está nas mãos das pessoas do dinheiro, e isso não é só no mercado do livro. Em geral, o pessoal que está no comando é o pessoal que faz cálculos na ponta do lápis. Eles estão distanciados das qualidades inerentes ao produto, e não conseguem ver nele outra coisa senão um produto. É por isso que, mesmo quando eles seguem a cartilha da Harvard School of Economics, a indústria editorial não está indo nada bem. É possível, sim, ir à falência por ter subestimado a inteligência do leitor americano! Publicar significa dar ao povo o acesso às coisas que ele quer ler, e talvez ajudar a produzir coisas melhores. Esta é a sua função social. E a indústria editorial não apenas está deixando de atingir este objetivo, como está trabalhando contra ele. (trad. BT)
 
Vejam só, isto é de 23 anos atrás. Em seu livro, André Schiffrin insiste várias vezes em lembrar que muitas linhas editoriais “culturais”, “literárias” não dão prejuízo, pelo contrário: dão lucros modestos, mas constantes. O problema é que os executivos lá do topo analisam as planilhas e concluem que aquele selo, com a “capacidade instalada” que tem, poderia dar lucros 3 ou 4 vezes maiores, se publicasse outro tipo de livro. E é nisso que dão com os burros nágua.
 
Diz Schiffrin:
 
Durante muitos anos, os livros da Vintage, ainda em seu formato menor, custavam em média 1,95 dólar. Aumentando ligeiramente o tamanho dos livros, a Vintage elevou seus preços para dez dólares ou mais. Eu me lembro de, na época, argumentar que isso iria reduzir muito o número de pessoas dispostas a comprar os novos livros da Vintage. Disseram: “Você talvez esteja certo, mas os dólares continuarão os mesmos”. Essa frase me pareceu o marco da transição da velha ideologia para a nova. A idéia de que um livro devia ser barato para atingir o maior público possível estava sendo substituída por decisões contábeis, preocupadas apenas com o total recebido. Não era apenas uma questão de ganhar dinheiro ou evitar perdas – o catálogo da Vintage, composto pelos melhores títulos dos catálogos de Random House, Knopf e Pantheon, já garantia um substancial lucro anual. A regra passara a ser que o lucro por livro tinha de ser o maior possível.

 
É um processo lento mas constante. 

Diz Schiffrin que “na década de 1950 Londres tinha cerca de duzentas editoras significativas. Hoje [2000] há menos de trinta.” 

Um cálculo parecido com o de Samuel R. Delany em About Writing (Wesleyan University Press, 3005), numa entrevista concedida em 1998:
 
O fato é que em ’79 cerca de oitenta editoras independentes floresciam em New York City. Hoje, dependendo do critério que se adote para calcular, há somente nove. Algumas mudanças simplesmente catastróficas deram um novo formato à matriz do mercado da edição norte-americana em geral, nos últimos vinte anos. (trad. BT)
 
É um movimento lento, geológico, mas que não exclui o surgimento incessante daquilo que mantém a cultura viva e renovada: as muitas pequenas editoras, as muitas pequenas livrarias, os muitos pequenos autores.   
 
 
 
 
 





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