terça-feira, 12 de julho de 2022

4842) Novidades da "Pedra do Reino" (12.7.2022)


A Editora Nova Fronteira lançou há poucos meses uma nova edição do Romance da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, como parte das comemorações dos 50 anos do Movimento Armorial. O livro havia saído pela José Olympio no seu lançamento em 1971, mas as edições mais recentes são da Nova Fronteira, com uma concepção gráfica totalmente diferente, coordenada pela família do escritor (falecido em 2014).
 
Esta edição de agora traz um bônus mais-que-precioso: um Caderno de Textos e Imagens, ilustradíssimo, com 272 páginas. Um ótimo brinde para os leitores da Pedra, que podem até não ser muitos, mas compartilham a fascinação e a curiosidade por todos os detalhes referentes à obra..
 
O volume é organizado por Carlos Newton Júnior, a “pessoa a quem eu faço todas as perguntas sobre assuntos ariânicos”; tem direção de arte de Dantas Suassuna, e projeto gráfico de Ricardo Gouveia de Melo.
 
O material contido no livro é objeto de uma detalhada explicação e contextualização por Carlos Newton, em sua introdução, onde ele – que durante muitos anos trabalhou ao lado de Ariano Suassuna – reconstitui o longo e tortuoso processo de criação do romance. E Carlos apresenta a primeira grande “novidade” desta edição: o texto Sinésio, o Alumioso, um manuscrito reproduzido em fac-símile, na caligrafia do autor, e datado de julho de 1958.


Este texto é portanto a célula original do romance (os leitores devem lembrar-se que no fim do livro Ariano grava de forma indelével as datas de começo e fim: 19-VII-1958 e 9-X-1970). Este manuscrito sobre Sinésio, portanto, data do início da criação do romance. Carlos Newton lembra, contudo, que as datas celebradas assim por Ariano são mais simbólicas do que práticas, e em termos cronológicos são meramente aproximativas.
 
Em todo caso, é fascinante ler agora esse manuscrito ainda verde, ainda balbuciante, em que o narrador Quaderna afirma chamar-se “Dinis Henriques Cipriano Quaderna” (nome depois trocado pelo definitivo “Pedro Dinis Ferreira-Quaderna”), e Sinésio ainda é “Sinésio Barretto Garcia” (em vez de “Sinésio Garcia-Barretto”).
 
Por outro lado, no manuscrito já estão prontos, com nomes praticamente idênticos, os professores de Quaderna (Samuel e Clemente) dois dos personagens mais brilhantes inventados por Suassuna. E já temos em 1958 um princípio de mergulho da famosa “Filosofia do Penetral”, um capítulo hilariante do livro, e que no presente rascunho ainda mantém alguns conceitos tapuio-filosofantes carregados de mistério e transcendência – o que seriam, à luz do que sabemos hoje, “a Parentela do Plasma”, “o Aluir do Inopino”, “o Galarim do Prestígio” ou “o Nó das Serpentes”?!...


Esta seção de manuscritos e datiloscritos reproduz fotograficamente o prefácio escrito por Rachel de Queiroz para a primeira edição. Também uma carta de Ernst Fromm, da Editora Agir, agradecendo a Ariano o direito de poder avaliar a obra em primeira mão, mas abrindo mão dela para que o autor a entregasse a outra editora mais capaz de dar ao livro “a difusão que merece como obra literária que, indiscutivelmente, é.”
 
Segue-se uma longa seção de iconografia com fotos de Ariano em diferentes grupos e momentos; reproduções de quadros de artistas ligados ao Movimento Armorial, como Dantas Suassuna, Flávio Tavares, Sérgio Lucena, Aluísio Braga, J. Borges e o próprio Ariano; capas das diferentes edições do livro, no Brasil e no estrangeiro.
 
Em seguida, outra preciosidade do ponto de vista literário-narrativo. Quando a TV-Globo produziu a minissérie A Pedra do Reino, lançada em 2007, nos 80 anos do escritor, a equipe de adaptadores (Luiz Fernando Carvalho, Luís Alberto de Abreu e eu próprio) recebeu de Ariano um caderno manuscrito com a “Conclusão” da história.



Como quem leu o livro sabe, a narrativa das aventuras de Quaderna foi interrompida por Ariano depois de 1976, deixando um “buraco” de eventos não contados. O que teria acontecido entre 1935 (data da invasão de Taperoá pela Estranha Cavalgada, com Sinésio à frente) e 1938, quando Quaderna, na maior cara-de-pau, dá ao Juiz Corregedor seu depoimento sobre a confusão toda? Mistério.
 
Para que a minissérie também não se interrompesse nesse vácuo, Ariano escreveu em 2006, a nosso pedido, essa “Conclusão”, aqui transcrita e revelada ao público pela primeira vez, esclarecendo alguns dos mistérios deixados incompletos no romance. Algumas das cenas sugeridas por ele foram incorporadas à minissérie.
 
Há alguns detalhes pitorescos que mostram o caráter ambivalente (geminiano?...) de Quaderna/Suassuna. Veja-se a confusão causada sem-querer por Sinésio, quando diz à família ter se apaixonado por “uma moça clara” que vivia na Fortaleza; ele se apaixonara pela loura Heliana, e a família supõe que é pela irmã dela, que se chama Clara.

Esse episódio de folhetim é espelhado de forma picaresca quando Quaderna tenta dizer a Dona Carmen Gutiérrez Torres Martins que está apaixonado pela filha dela, a loura Margarida – e o faz de maneira tão canhestra que as duas imaginam que foi pela matrona que ele se apaixonou. Esta cincada vale a Quaderna o ódio eterno de Margarida, que futuramente servirá de escrivã no interrogatório de Quaderna pelo Juiz Corregedor.


(Irandhir Santos e Milene Ramalho: "Quaderna" e "Margarida" na minissérie)
 
Claro que, como todo ódio feminino de folhetim, o de Margarida também é solúvel em tintura-de-melodrama, e no fim da história ela cai nos braços de Quaderna.
 
Alguns detalhes da trama são esclarecidos nesse texto final, entre eles a portentosa questão do tesouro deixado por D. Pedro Sebastião Garcia-Barretto. Quaderna faz referência ao mapa da Paraíba e às letras nele contidas; uma solução não muito diversa da que aparece no filme Cinco Covas no Egito (“Five Graves to Cairo”, 1943) de Billy Wilder, filme que Ariano Suassuna  comentava ter visto.
 
O Caderno de Textos e Imagens é, assim um adendo essencial e indispensável ao Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue de Vai-e-Volta, este (no dizer de Quaderna) “romance heróico-brasileiro, ibero-aventuresco, criminológico-dialético e tapuio-enigmático de galhofa e safadeza, de amor legendário e de cavalaria épico-sertaneja”.
 
É um desses casos clássicos de obra inacabada mas que mesmo assim veio à publicação. Essa “história sem fim”, vai ficar eternamente rodando inconclusa, em loop, na memória e na imaginação dos leitores. Fica na honrosa prateleira dos livros deixados incompletos pelos autores: O Mistério de Edwin Drood (1870) de Charles Dickens, O Original de Laura (1977) de Vladimir Nabokov, 53 Jours (1989) de Georges Perec, Le Mont Analogue (1952) de René Daumal, O Processo (1925) de Franz Kafka, o poema Kubla Khan (1816) de Samuel Taylor Coleridge...
 
E para os que encontram alguma dificuldade na leitura do livro, ou no acompanhamento da minissérie, deixo aqui as palavras lúcidas e práticas de meu colega de roteiro, o dramaturgo Luís Alberto de Abreu:
 
“É preciso deixar claro para o espectador, desde o início, os códigos onde se apoia a obra. Se o sistema for simples e de fácil entendimento, não há dificuldade de compreensão. Esse sistema de código não pode ser aleatório, nem se transformar num quebra-cabeça intelectual. É preciso descobrir um sistema orgânico, natural. Se partirmos do princípio que toda a obra é construída a partir das lembranças de um velho homem, toda quebra de tempo e de espaço, fantasia e realidade, serão facilmente assimiláveis pelo espectador porque são determinadas organicamente pela memória de um personagem. Foi isso que fizemos.” (Luís Alberto de Abreu)


(foto de Gustavo Moura)
 






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