quinta-feira, 30 de junho de 2022

4838) O real-maravilhoso de César Vallejo (30.6.2022)



A Editora Bandeirola (SP), que está publicando alguns livros meus, mantém uma linha, a “Clássicos Vintage”, dedicada à literatura de cerca de 100 anos atrás. Depois de Conan Doyle, H. G. Wells e Franz Kafka, ela coloca agora em financiamento coletivo, através do “Catarse”, um volume do peruano César Vallejo, com tradução de Ellen Maria Vasconcellos, juntando duas coletâneas: Escalas Melografiadas e Fábula Selvagem, ambas de 1923.
 
Veja aqui informações sobre o livro e a campanha:
https://www.catarse.me/vallejo
 
Vallejo é considerado um dos poetas mais importantes da América Latina, principalmente por seus livros Os Arautos Negros (1919) e Trilce (1922).  Depois destas obras marcantes, Vallejo publicou seus dois pequenos volumes de contos e foi morar na França, onde morreu aos 46 anos, em 1938.
 
O que as pessoas chamam de “Modernismo” envolve variadas formas e técnicas literárias que (mesmo tendo sempre existido aqui e ali) se disseminaram na virada do século 19 para o 20.
 
Por exemplo, as vinhetas descritivas e pequenos episódios narrativos de Kafka em Contemplações (1912) correspondem de certo modo às vinhetas e episódios que Arthur Rimbaud usou em seus últimos livros, As Iluminações (1875) e Uma Estação no Inferno (1873).
 
Não cabe aqui falar em influências, ou tentar descobrir se Kafka leu Rimbaud. Os dois são pontas de um iceberg, ou melhor dizendo são ilhas que denunciam um continente submerso. Alguns historiadores chamam esse continente de Simbolismo, quando se referem ao autor francês (Edmund Wilson, por exemplo), e outros o chamam de Expressionismo quando se referem ao tcheco que escrevia em alemão. Chamem do que quiserem: têm algo em comum, sim, têm uma certa visão e uma certa dicção em comum, por mais diferentes que sejam.
 
Há neste tipo de escrita um afastamento voluntário da espessa e encorpada ficção realista praticada na Europa do século 19. Beneficiando-se de suas descobertas (todo movimento novidadeiro sobe nos ombros do movimento anterior, a quem pretende suceder), recorre ao enorme poder das descrições precisas, visuais, de um olhar acostumado à pintura e depois ao cinema.
 
Recorre também ao poder de verbalização dos estados mentais subjetivos, que outros autores (Proust, Woolf, Joyce) estavam levando ao limite nessa mesma época, nos formatos longos da ficção. Recorre ao formato “fragmento”, de meia ou uma página, que muitos leitores de cem anos atrás devem ter saudado como um tipo de literatura “em sintonia com a velocidade dos tempos modernos, os tempos de novidades como a energia elétrica, a bicicleta e o automóvel”.


 
Vallejo começou a publicar suas “iluminações” ou “contemplações” após a I Guerra Mundial, e isto já basta para distanciá-lo dos outros dois. Suas “ilha” é mais afastada, e recebe todo o caos, o desespero e a errática revolta que inspiraram, na longínqua Europa, movimentos como o Dadaísmo e o Surrealismo.
 
Me falta um conhecimento da literatura peruana que me permita tentar situar César Vallejo no interior da prosa e da poesia do seu povo, do contexto em que ele estava traduzindo, em verso e em prosa, o tumulto de sua atividade política e de sua vida pessoal. A leitura destes dois livrinhos de textos curtos, compactos, surpreendentes aponta para várias direções ao mesmo tempo.
 
Uma delas é o preciosismo verbal, o vocabulário encrespado de palavras exóticas. Uma tendência meio de época mas que nunca se extinguiu, e que aqui no Brasil vem desde o jargão científico-filosófico de Euclides da Cunha e Augusto dos Anjos até a retórica helênica e latinista de Coelho Neto, vindo até o maneirismo do Guimarães Rosa de Tutaméia, com seus neologismos e sua sintaxe quebradiça.




Há traços disto em Vallejo, em muitas formações exóticas, onde substantivos são torcidos para se transformar em verbos ou adjetivos. Defeito passivo ou efeito proposital? Não importa muito; é o espírito da época.
 
A linguagem da época, por certo, uma literatura para onde vazava um transbordamento de terminologia científica já familiar a muitos autores, e que eles podiam imaginar ser também familiar ao público leitor de livros. Não custa lembrar que a primeira Universidade peruana, a de San Marcos, foi criada em 1551, e a Universidade de Trujillo, onde Vallejo foi aluno, foi criada em 1824. O Brasil, nesse tempo...
 
Discute-se bastante a relação entre Vallejo e o movimento surrealista francês. É mais uma questão de afinidade de espírito (e de fontes) do que de filiação ou de influências. Quando Vallejo publicou em 1923 Escalas melografiadas e Fábula selvagem, a literatura surrealista oficial contava apenas com Les Champs Magnétiques (1920), onde André Breton e Philippe Soupault publicaram suas primeiras experiências de escrita automática.



Claro que por trás disso tudo havia a fragmentação do texto narrativo, dando à “vinheta” (pode-se chamá-la assim) uma proeminência que o conto começara a ter cem anos antes, com Edgar Allan Poe e outros. Textos cada vez mais curtos, intensamente visualizados, energeticamente escritos, rompendo sem muito pudor os limites (sempre artificiais, sempre fruto de convenções teóricas) entre a poesia e a prosa.
 
Vallejo constrói seu “real maravilhoso” com o auxilio dessa linguagem fortemente artificial; seu fantástico não é a irrupção do sobrenatural num cotidiano jornalisticamente reconstituído, é um mergulho imediato num plano levemente alucinatório, onde tudo pode ser banal mas toda ruptura é também possível.
 
Existe algo kafkeano em alguns dos seus relatos de prisão contidos em Escalas Melografiadas – o bêbado que causa a morte do amigo (“Muro Duplo”). Em “Além da Vida e da Morte”, o narrador cavalga de volta ao povoado onde nascera, num clima fantasmagórico que não deixa de lembrar o Pedro Páramo (1955) de Juan Rulfo; reencontra com espanto a mãe já falecida, e é ela quem se assombra ao rever o filho – que estava morto.
 
Em “Muro Noroeste”, o narrador, na prisão, questiona os aparelhos da justiça humana, que ele considera incapazes de distinguir entre um culpado e um inocente, e por tabela questiona o próprio conhecimento científico da realidade:
 
O homem que ignora qual temperatura, com que suficiência acaba uma coisa e começa outra; que ignora a partir de que tom o branco já é branco e até que tom deixa de ser; que não sabe nem jamais saberá que hora começamos a viver, que hora começamos a morrer, quando choramos, quando rimos, nem onde o som faz fronteira com a forma nos lábios que dizem: eu... não alcançará, não pode alcançar saber até que grau de verdade um ato qualificado como criminoso é criminoso. O homem que ignora a que hora o 1 deixa de ser 1 e começa a ser 2, que até dentro da exatidão matemática carece da inconquistável plenitude da sabedoria, como poderá algum dia determinar e fixar o caráter delinquente de um ato, através de uma teia de motivos de destino, dentro da grande engrenagem de forças que movem os seres e coisas quando estão diante de outras coisas e seres?
 
As famílias inteiras que se transformam em macacos em “Os Caynas”, o homem que aparentemente não consegue distinguir entre duas namoradas em “Mirtho”, são variações de temas clássicos do fantástico, mas mais que o argumento em si é possível ver o espírito, a constatação dos estados mórbidos da mente, a susto da racionalidade que não consegue abranger e domesticar todas as experiências humanas.
 
Um espírito inconsciente e coletivo que Vallejo compartilhava à distância com outros contemporâneos seus como os nossos João do Rio e Lima Barreto; e mais cronistas, contistas, poetas que captavam com polaróides sintéticas e linguagem eletrificada as transformações aceleradas de sua época.







segunda-feira, 27 de junho de 2022

4837) "O Cavalo de Turim" (27.6.2022)



Béla Tarr é um diretor húngaro famoso por seus filmes lentos, de planos longos e complexos. O último deles, O Cavalo de Turim (2011, em parceria com Agnes Hranitzky, sua esposa, e montadora de seus filmes), está no YouTube – com ótima imagem e legendas em português.
 
Aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=uR4IdLrR3I8&t=636s
 
O filme narra sete dias da vida de um velho e sua filha numa casa de pedra, numa região remota e árida, batida por um vento gelado o dia inteiro. Com diálogos raros e curtos, presenciamos o cotidiano dos dois, as tarefas domésticas, o trabalho de rachar lenha, preparar comida, lavar roupa, levar o cavalo e a carroça até o povoado vizinho (que nunca aparece).


Num filme de Béla Tarr, são comuns planos de oito ou dez minutos, sem diálogo, com pouca ação, câmera parada. E no entanto esses planos não são vazios ou monótonos (pelo menos para mim). Parecem-me carregados de vida interior e de significado. Por que será? Porque o diretor é famoso, é premiado? Nem tanto, porque há dezenas de outros, mais famosos e mais premiados do que ele, por cujos filmes não dou um vintém.
 
Aquele mundo pedregoso em preto-e-branco parece um pouco o sertão de Cabaceiras, mas um sertão gelado, uma caatinga dos ventos uivantes, um Vidas Secas em que uma batata cozida é refeição bastante. O velho tem o braço direito “morto” e precisa ser ajudado para se vestir e outras tarefas, mas é obstinado e incansável em seu trabalho com a carroça e o cavalo. A moça também não pára: arruma, cozinha, lava, pega água, acende fogo.



E de vez em quando um dos dois senta à janela e fica olhando o nada lá de fora, enquanto a ventania canta. E a câmera não se mexe.
 
A trilha sonora do filme é hipnótica, porque reproduz os assobios e os uivos do vento em loop, e qualquer coisa insistentemente repetida em loop acaba ganhando uma espécie de significado musical, assim como um pedaço de imagem arrumado em  forma de “ladrilhos” ganha algum tipo de simetria e parece conter intenção estética.
 
Existe algo de Samuel Beckett e de Esperando Godot nesse casal lacônico. Eles parecem ter uma amnésia ao contrário: são o inverso daquelas pessoas que esqueceram o passado. Eles esqueceram o futuro. Repetem todos os dias os mesmos gestos, e só sabemos que o dia é outro porque a câmera desta vez está numa posição diferente.
 
“Para alguns a vida é interminável, e o que é interminável não tem mais sentido. Como encontrar o tempo de viver? Para outros, a vida terminou antecipadamente. Chegou ao fim antes de começar. Ela se desenrola numa espécie de fita abstrata, excluindo qualquer dimensão temporal. Algumas vidas fazem assim, inutilmente, o sacrifício de seu fim, e perdem até a lembrança de sua origem.”
Jean Baudrillard (Cool Memories, 1980-1985, Rio: Espaço e Tempo, 1987)
 (trad. Mauricio Carvalho Lyrio)
 

E, tal como os dois vagabundos de Beckett, eles recebem uma visita. Um vizinho vem comprar um pouco de aguardente. E despeja sobre eles uma torrente de palavras que resumem seu desespero frio com o que os donos do mundo fizeram com ele: “Pôr as mãos, adquirir, finalmente degradar”. É um monólogo de cerca de cinco minutos, em que o casal escuta e não diz nada.
 
Lembra o monólogo de Lucky, em Godot, uma torrente de palavras que brota como um iceberg no meio de uma história lacônica e introvertida.



A segunda grande interrupção na rotina é a chegada de uma carroça de ciganos que estão indo embora daquela região, e que trazem um relâmpago de vida e de algazarra. É como se num filme de Bergman (naquelas ilhas pedregosas e inóspitas de Bergman) chegasse uma caravana de saltimbancos de Fellini. Eles usam toda a água do poço, convidam a moça a acompanhá-los “para a América”, riem, falam sem parar, e somem na poeira.
 
O Cavalo de Turim tem esse título devido ao episódio que (reza a lenda) desencadeou a loucura final do filósofo Nietzsche. Ele teve uma crise nervosa em Turim, ao ver um cavalo cansado ser chicoteado por seu dono. Béla Tarr e o roteirista Laszlo Krasznahorkai se perguntaram: “E o que aconteceu com o cavalo, depois que o filósofo foi levado embora?”



O cavalo aparece em todo seu vigor e toda sua beleza na magnífica sequência inicial do filme, em que o velho dispara sua carroça pela estrada, voltando para casa. É uma explosão de vitalidade que aparentemente esgota todas as forças de ambos, porque daí em diante, deixam-se consumir pela apatia. O próprio cavalo recusa-se a comer, como um “Bartleby, o Escrivão”, o personagem de Herman Melville que de uma hora para outra resolve não fazer mais nada.
 
É como se um ataque gradual de entropia, de perda de energia vital, se abatesse sobre aquele lugar (o vizinho, em seu monólogo, atribui isto ao rumo que o mundo inteiro está tomando). A água seca. O fogo se apaga. A lamparina recusa-se a ser acesa. A natureza parece estar deslizando devagar para a morte térmica.
 
Béla Tarr pertence à escola de Ingmar Bergman, Robert Bresson, Andrei Tarkovsky. Uma escola geralmente minimalista, de planos longos e bem trabalhados, elencos reduzidos, simplicidade rigorosa. O Cavalo de Turim é uma fábula das existências que ficaram pelo meio do caminho quando uma parte do mundo enriqueceu. Como um tripulante que caiu no mar durante a noite, e o navio foi embora sem dar pela falta dele. 





sexta-feira, 24 de junho de 2022

4836) Nordestinense sem mestre (24.6.2022)



A fala nordestina é cheia de sutilezas, muitas delas compendiadas no indispensável Dicionário do Nordeste de Fred Navarro (Recife, CEPE Editora). Uma das minhas distrações é recolher exemplos durante minhas leituras.
 
RISCAR – Chegar de repente, às pressas.  “Eu já estava desistindo de esperar, e ia chamar um táxi, mas quando deu sete e meia ele riscou com o carro lá em frente, falou que tinha ficado preso num engarrafamento”.
 
Ela aí chamou o rei
Ligeiramente mostrou,
O rei também conheceu
Bastante se alegrou,
Bem na porta do palácio
O seu cavalo riscou.
 
Do seu cavalo apeou
Para no palácio entrar
Já o rei e a rainha
Vieram lhe encontrar
Levaram ele nos braços
Para a saudade matar.
 
(Minelvino Francisco da Silva, “O filho de João Acaba-Mundo e o Dragão do Reino Encantado”)
 
 
AMOLEGAR -- Apalpar com as pontas dos dedos, pressionando-as de leve para experimentar a textura ou a resistência de algo.  "Êi, dona!  Só amolegue as frutas se fôr comprar, senão estraga."  "Ela se faz de santa, mas o namorado passa a noite amolegando os peitos dela."
 
CLARABELA - (...) Você deite aqui no banco, que eu vou lhe dar uma massagem nas costas!
SIMÃO - Uma massagem?  O que é isso?
CLARABELA - Você se deita aqui, eu pego você por trás, vou amolegando assim, vou amolegando mais, devagar, bem devagar como quem prepara massa!  Agrado, esfrego, amolego: a dor, num instante, passa!”
(Ariano Suassuna, A Farsa da Boa Preguiça, Ato II)
 
Uma ligeira variante do gesto é registrada nesta sextilha do poeta Manoel Xudu:
 
João Batista tem repente
eu ouço sentindo medo
que só mocó que avista
um caçador no rochedo
de espingarda no rosto
já amulegando o dedo.
(em Poemas, Prosas e Glosas, de Zé Laurentino, pág. 57)
 
Por extensão, significa também "amolecer", inclusive no sentido figurado:
 
O Padre Gama nos fala de meninos que conheceu sempre "empapelados e envidraçados"; e tratados com tantas "cautelas de sol, de chuva, de sereno, e de tudo, que os pobres adquirem uma constituição debil, e tão impressionavel que qualquer ar os constipa, qualquer solzinho lhes causa febre, qualquer comida lhes produz indigestão, qualquer passeio os fadiga, e molesta".  Amolegado por tantos mimos e resguardos das mães e das negras, era natural que muito menino crescesse amarelo: a mesma palidez das irmãs e da mãe enclausuradas nas casas-grandes.
(Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, pag. 426)
 
 
ESTOPOR – Doença imaginária que aparece em ameaças, pragas, imprecações, comparações exageradas, etc.  Visívelmente, uma corruptela de "estupor".  Frequentemente se usa a forma intensificada "estopor balaio".
 
Policarpo – (...) Porque eu gosto de cantar, gosto de malandragem.  Agora a mulé não deixa, não.  A minha mulé é uma disgraça.  É uma cobra cascavé.  É um istôpô balaio.
(Peça popular de mamulengos, em O Mundo Mágico de João Redondo, de Altimar de Alencar Pimentel, pag. 207)
 
 
GOGA -- Jactância; vanglória; presunção. (Pron.: góga“Fulano é muito metido a besta, mas qualquer dia eu vou acabar com a goga dele.”  “Deixe de goga e de falar que é valente, que eu já vi você pular uma janela com medo duma faca.”   Vem certamente de “gogó”, “garganta”. 
 
Os Pereira também forneciam homens-de-espingarda.  Por dinheiro, por prestígio, mediante troca de favores e, não raro, por goga.  Para serem falados e temidos.  Todo grande coronel agiu assim.
(Pedro Nunes Filho, Guerreiro Togado, pag. 17)
 
Godoy, que saíra da Bahia há mais de uma semana, ainda não tinha tentado agarrar o boi Mandingueiro. Foi chegando e apostando duas dúzias de cachaças que ia transformar esse tal de Mandingueiro num simples espalha-merda.  E tanto acreditou na façanha prometida, que resolveu beber a aposta adiantada, contando goga e farol a cada gole emborcado.
(Nei Leandro de Castro, As pelejas de Ojuara, pag. 199)
 
 
RODAGEM -- Estrada asfaltada. "Pra ir na casa dele você vira aqui à direita, vai em frente, atravessa a rodagem, do outro lado você continua até um ferro-velho que fica perto de uma vacaria, ele mora vizinho."  A origem da expressão deve ser a denominação do DNER, "Departamento Nacional de Estradas de Rodagem", a quem cabia asfaltar estradas.
 
Viera a pé, e não a cavalo.
Andava a pé, mas de sapato.
     A pé, pela rodagem,
     E em roupas de cidade.
(João Cabral de Melo Neto, “’Claros Varones’”, Serial, in Obras Completas, pag. 305)
 
Tem nega boa
da rodagem e Zé Pinheiro,
tem os cabras do Ligeiro
tudo armado de punhal...
(Jackson do Pandeiro, Forró de Zé Lagoa, de Rosil Cavalcanti)
 
O país e o estado que tem um pau com 20 metros de diâmetro, quer dizer, grossura, que a rodagem passa por dentro dele é nos Estados Unidos da América do Norte e na Califórnia o americano pegou, abriu este pau no meio encimentou por dentro e por fora, todos os transportes coletivos e transportes de cargas passam por dentro dele.  Este pau chama-se Secóia.
(José Américo II, Uma Vitória Dentro de Uma Derrota que Não Tive.  Esta Derrota Foi a Vitória do Meu Livro, Campina Grande, ed. do autor, pag. 77)
 
Uma brincadeira comum no Nordeste é pessoas de um Estado ou cidade atribuírem aos vizinhos deturpações engraçadas de títulos de filmes ou de músicas.  Em João Pessoa se diz que, em Campina Grande, a música de Erasmo Carlos “Sentado à beira do caminho” virou “De coca (=cócoras)  no aceiro da rodagem”.
 
 
NAQUELE TEMPO, ERA DINHEIRO MUITO -- Frase frequente na conversa de pessoas mais velhas, quando começam a referir quantias em moedas que já sumiram.  “Depois disso, meu avô vendeu a fazenda por cem contos de réis...  Naquele tempo, era dinheiro muito!”   “Dinheiro muito” carrega muito mais ênfase do que “muito dinheiro”. 
 
Um dia um cabra de Cabo Preto apareceu na fazenda com uma carta do chefe.  Deixou o clavinote encostado a um dos juazeiros do fim do pátio, e de longe ia varrendo o chão com a aba do chapéu de couro.  Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva soletrou o papel que o homem lhe deu e mandou Amaro laçar uma novilha.  O cabra jantou, recebeu uma nota de vinte mil-réis, que naquele tempo era muito dinheiro, e atravessou o Ipanema, tangendo o bicho.
(Graciliano Ramos, Angústia, pag. 25).
 
 
JUNTAR-SE – Amigar-se, amancebar-se, viver maritalmente.  "Depois que a mulher morreu, ele se juntou com a dona do botequim, e agora é que não sai mesmo de lá."  Existe o adjetivo "junto/a" que funciona quase como um estado civil oficial.  "Coitada de Comadre Dodô.  A filha mais velha casou mas ficou viúva; a outra é vitalina, e a mais nova é junta".
 
Baltazar (...) – Aquela menina é sua irmã?
Terezinha – É minha filha.
Baltazar – E a senhora é casada?
Terezinha – Não senhor.
Baltazar – E a senhora é junta?
Terezinha – Não senhor.
Baltazar – A senhora é viúva?
Terezinha – Não senhor.
Baltazar – E que diabo é isso?  Uma senhora que nem é casada nem junta?
Terezinha – É porque eu me casei e adepois que eu me casei o marido deixou-me.  Me abandonou-me.
(Peça popular de mamulengos, em O Mundo Mágico de João Redondo, de Altimar de Alencar Pimentel, pag. 182)
 
 
PÔPA -- A sacudidela brusca de um animal de montaria, acompanhada por uma tentativa de escoicear.  “O cavalo ficou dando pôpa no meio do terreiro, não tinha quem chegasse perto”.  Talvez tenha origem no termo náutico, "popa", que se refere à parte traseira da embarcação.
 
O uso mais generalizado acabou sendo o uso figurado, ou seja, a reação irritada de alguém: “Rapaz, minha mãe deu a maior pôpa comigo por causa da hora que eu cheguei ontem de noite”.  De um modo geral, “dar pôpa” equivale a “dar patadas”.  Existe o adjetivo “popeiro”: “Fulano é um ótimo professor, só é muito popeiro, é preciso ter paciência com as brutalidades dele.”   
 
Valentão do Mundo disse:
isso para mim é sopa;
o monstro fêz caracol
rodou e deu uma popa
saiu um fogo azulado
que quase lhe queima a roupa.
(Severino Milanês da Silva, Estória do Valentão do Mundo)
 
 
 
 
 
 







terça-feira, 21 de junho de 2022

4835) A arte do acróstico (21.6.2022)



 
Bons redatores assinam um livro iludindo olhares; teoricamente, a verdadeira arte revela-se entre segredos.
 
O parágrafo acima é um acróstico. Se você não sabe o que é um acróstico, mexa-se, bote para funcionar as pequeninas células cinzentas.
 
O acróstico é um dos muitos jogos de palavras (“wordgames”, “jeux de mots”) que são praticados há séculos, talvez há milênios, em muitas culturas, e sempre despertam nas pessoas de senso prático uma surpresa contrafeita: “Mas que besteira, que perda de tempo, para que serve isso?”
 
O acróstico, como recurso da escrita poética, por exemplo, não é muito diferente da rima. A rima consiste em repetir, a intervalos regulares, os mesmos sons, palavras que contenham sons iguais ou parecidos.
 
A rima tem o pretexto de produzir um efeito estético, quase melódico. Enquanto nossa mente intelectual decifra o “conteúdo” das palavras, nossa mente sensorial vai registrando essas repetições, uma série de pequenas expectativas sonoras que logo são satisfeitas.
 
Já o acróstico... é quase invisível. Ninguém lê um poema prestando atenção à letra inicial de cada linha, a menos que tenha uma razão prévia para isso.


Eis aqui um exemplo básico, do poeta Leandro Gomes de Barros, assinando seu nome no folheto História do Cachorro dos Mortos:
 
Leitor não levantei falso
Escrevi o que se deu,
Aquele grande sucesso
Na Bahia aconteceu,
Da forma que o velho cão,
Rolou morto sobre o chão
Onde o seu senhor morreu.

No tempo dos reis, os poetas costumavam usar o nome dos soberanos, numa coluna vertical de letras, para compor seus poemas. Poemas religiosos e devocionais eram feitos no mesmo sistema.


C. C. Bombaugh, em seu fascinante “almanaque” de curiosidades (Oddities and Curiosities of Words and Literature, Dover, 1961, ed. Martin Gardner) dá exemplos de três modalidades: o acróstico (onde palavras são formadas com as letras iniciais dos versos, lidas verticalmente), o mesóstico (o mesmo, só que com a letra mais ou menos no meio do verso) e teléstico (com a letra final de cada linha).
 
Ele chega a dar um exemplo latino, onde as três formas são usadas ao mesmo tempo:
 
Inter cuncta mitans   Igniti sidera coelI
Expellit tenebras  E todo Phoebus ut orbE
Sic caecas removet JeSus caliginis umbraS
Vivificansque simul Vero praecordia motV
Solem justitiae Sese probat esse beatiS
 
A palavra “Jesus” é formada três vezes na vertical, usando a tradição latina em que J e I se equivalem, e o mesmo para U e V.
 
Na literatura do cordel, o acróstico começou como uma forma do poeta assinar o folheto disfarçadamente, para se prevenir de plágios e apropriações. Depois que o recurso se revelou aos olhos de todos, os plagiários ficaram alerta, e ele deixou de servir de proteção. Tornou-se uma tradição, um floreio estilístico, como neste exemplo de Antonio Américo:



Assinar disfarçadamente um texto era um desafio e um passatempo para muita gente. Edgar Allan Poe, depois de ficar viúvo, teve um namoro breve com uma dama, Frances Sargent Osgood, e dedicou-lhe um poema, “A Valentine”, com assinatura disfarçada. As letras do nome dela apareciam de uma em uma: a primeira letra da primeira linha, a segunda letra da segunda linha, a terceira da terceira, e assim por diante.
 
Eis as quatro primeiras linhas do poema (que tem 20 linhas, usando as vinte letras do nome):
 
For her this rhyme is penned with luminous eyes,
BRightly expressive as the twins of Laeda,
ShAll find her own sweet name, that nestling lies
UpoN this page, enwrapped from every reader.
(…)
 
...e por aí vai. O poema completo pode ser lido aqui:
 
https://en.wikisource.org/wiki/The_Works_of_the_Late_Edgar_Allan_Poe/Volume_2/A_Valentine
 
Pode-se usar também o acróstico num texto em prosa, onde ele acaba se diluindo e praticamente desaparecendo.
 
Há um episódio literário em que um acróstico serviu de armadilha para enganar um autor. O escritor A. N. Wilson começou a escrever uma biografia de Sir John Betjeman, “Poeta Laureado” da Inglaterra. Esse trabalho provocou uma reação de ciúme de outro biógrafo do poeta, Bevis Hillier. Wilson publicou uma carta atribuída ao Poeta, e depois ficou provado ser ela uma falsificação: as letras iniciais das frases, a partir da segunda, formavam a frase em acróstico “A. N. Wilson is a shit” (“A. N. Wilson é um merda”). Depois, Hillier confessou ser o autor da “pegadinha”.
 
A imagem abaixo, que peguei na Internet, mostra uma experiência curiosa, aparentemente assinada por “Sairam Gudiseva, 3º. Período”. Ao invés de letras, usa palavras inteiras. É um trabalho escolar sobre Física Quântica, mas na vertical o autor ou autora colocou versos de uma canção pop de Rick Astley. 


As possibilidades, como sempre, são infinitas.
 
 
 
 
 





sábado, 18 de junho de 2022

4834) Chico Buarque: "Que Tal Um Samba?" (18.6.2022)



Chico Buarque deu o pontapé inicial de sua nova turnê, que começa pela Paraíba em setembro, com o lançamento online de uma canção inédita, “Que Tal Um Samba?”.
 
Aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=1yW77WeLYYc
 
A canção, pelo menos aos meus ouvidos, foge ao padrão costumeiro da canção popular que toca no rádio, o formato A-B-refrão-C, ou parecido. Não me soa como uma canção com “primeira parte e segunda parte”. É antes uma canção circular, uma canção carrossel, que desde o início propõe uma sequência de acordes em loop, e em cima deles a melodia e as letras se instalam, e começam a tecer pequenas variantes.
 
A música gira, gira, gira em torno de si mesma, e a cada volta do carrossel exibe um cavalinho novo, uma comparação esperta, uma rima bem lembrada antes de soar o gongo, ou uma síncope que dá molejo a uma estrutura baseada principalmente em cadências de 4 e de 8 sílabas.
 
Falei “circular”, mas seria mais preciso dizer que a estrutura é espiralada. De vez em quando esse círculo girante se eleva e se alarga, admite uma modulação para tom menor, que logo se conclui e retorna à base anterior. É como quando um carro vai numa pista de asfalto, pega à direita num trevo, traça uma volta completa e retorna à reta.
 
Ou como aquele avião de Santos Dumont, que avançava pela terra, aí alçava um voo confiante mas breve, flutuava, e descia para rodar na terra novamente.
 
Essa variante musical vem sucessivamente com os versos:
 
“uma samba pra alegrar o dia...”
“fazer um gol de bicicleta...”
“que tal uma beleza pura...”
 
Mas pelo meu ouvido não chega a constituir uma “segunda parte” propriamente dita. São decolagens melódicas de voo curto. (E em tudo isto não vai nenhum juízo de valor: esse tipo de canção é pra ser assim mesmo.)
 
Isso, pra mim, coloca “Que Tal Um Samba?” na mesma categoria de canções tão diferentes entre si quanto o “Samba da Bênção” (Baden/Vinícius) ou “Águas de Março” (Tom Jobim). São canções riocorrentes, em loop. Cada qual tem seu desenho próprio no interior de uma estrutura que é fechada (pela repetição quase hipnótica) e aberta – porque essa base constante oferece aos instrumentistas um território inesgotável para improvisações descontraídas; e aqui vale tirar a cartola para o bandolim de Hamilton de Holanda e suas filigranas milimétricas.
 
Quanto ao tema... O que dizer de uma canção de um autor como Chico, num momento como o atual? É uma canção convidando a sacudir a poeira e dar volta por cima.
 
Poeticamente, o que mais me atraiu foi essa célula fundamental da canção, esse quase intraduzivel “Que tal?...”, tão coloquial, tão brasileiramente intimo e igualitário. Equivale a um convite com uma cotovelada leve nas costelas do amigo, ou uma puxadinha carinhosa no braço da namorada. É um “ – Bora lá?...”, é um “ – Tás a fim?...”, uma sugestão sem compromisso mas focada, um indicador tocando o cardápio, um palpite feliz.
 
Acho que não serei o único a quem esta canção lançada ontem lembrou um pequeno clássico do primeiro LP de Chico, aquele que eu comprei na Olacanti aos dezesseis anos, talvez por dezesseis cruzeiros.
 
“Tem Mais Samba” era uma das músicas que não tocavam no rádio, ao contrário das minhas preferidas (“Olê, Olá” e “Pedro Pedreiro”). Ela é o que eu chamo de canção-manifesto, canções que se dirigem ao ouvinte para explicar-lhe a essência e o espírito de um gênero musical. Exemplos óbvios são os clássicos de Luiz Gonzaga “Baião” (com Humberto Teixeira) e “Imbalança” (com Zé Dantas), ou o “Rock and Roll Music” de Chuck Berry.  
 
Nessa canção o jovem Chico, muito circunspecto, como todo jovem talentoso buscando demarcar seu território, e com a segurança dos recém-convertidos, afirma:
 
Tem mais samba no encontro que na espera;
tem mais samba a maldade que a ferida;
tem mais samba no porto que na vela;
tem mais samba o perdão que a despedida...
 
Eu, que naquele tempo era ainda mais jovem do que ele, ficava matutando sobre estas inequações e pensava que de acordo com o soprar do vento cada formulação dessas podia muito bem ser invertida, sem perda filosófica alguma.
 
E agora o Chico septuagenário emerge com outro samba-manifesto. Menos sentencioso, menos taxativo... Agora é o Chico risonho da capa do disco, curtido, calejado, descontraído, que mesmo em tempos sombrios se limita a nos piscar o olho e a dizer: “Que tal?...”


 
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QUE TAL UM SAMBA? (Chico Buarque)

  

Um samba,

que tal um samba?

Puxar um samba, que tal?

Para espantar o tempo feio,

para remediar o estrago...

que tal um trago?

Um desafogo, um devaneio?

Um samba pra alegrar o dia

pra zerar o jogo

coração pegando fogo

e cabeça fria;

um samba com categoria, com calma,

cair no mar, lavar a alma

tomar um banho de sal grosso, que tal?

Sair do fundo do poço,

andar de boa

ver um batuque lá no cais do Valongo

dançar o jongo lá na Pedra do Sal

entrar na roda da Gamboa...

Fazer um gol de bicicleta

dar de goleada

deitar na cama da amada

despertar poeta;

achar a rima que completa o estribilho...

Fazer um filho, que tal?

Pra ver crescer, criar um filho

num bom lugar, numa cidade legal,

um filho com a pele escura

com formosura

bem brasileiro, que tal?

Não com dinheiro,

mas a cultura...

Que tal uma beleza pura

no fim da borrasca?

Já depois de criar casca

e perder a ternura

depois de muita bola fora da meta

de novo com a coluna ereta, que tal?

Juntar os cacos, ir à luta,

manter o rumo e a cadência,

esconjurar a ignorância, que tal?

Desmantelar a força bruta,

então que tal puxar um samba

puxar um samba legal

puxar um samba porreta

depois de tanta mutreta

depois de tanta cascata

depois de tanta derrota

depois de tanta demência

e de uma dor filha da puta, que tal?

Puxar um samba,

que tal um samba?

Um samba...

 

 

quarta-feira, 15 de junho de 2022

4833) Primeiras Estórias: "Luas de Mel" (15.6.2022)



O décimo-quinto conto das Primeiras Estórias (1962) de Guimarães Rosa é uma celebração discreta ao tema do “Make Love, Not War”.
 
Joaquim Norberto é um fazendeiro idoso, ao que tudo indica um ex-jagunço, aposentado das valentias, acomodado no ramerrão da boa vida de comer e fazer a digestão na rede. Ele diz ter tido uma mocidade de “desmandos, desordens e despraças”. E agora, na fase grisalha, ocupa-se em “reconciliar, recatar e recompor”.
 
Um dia, desembarca na fazenda dele um casal de jovens, sob a proteção de um chefão rural, Seo Seotaziano, com um bilhete e o pedido para que sejam abrigados ali. O rapaz “roubou a moça pra casar”, e provavelmente os dois serão perseguidos pelos capangas do pai dela.
 
Joaquim Norberto pula da rede e toma providências, saindo “dos suspensos para os preparos”. O casal é rapidamente posto em quartos separados, e fica sob paternal vigilância. O fazendeiro arregimenta homens de armas das redondezas, além dos que já mantinha, para a hipótese de cerco e tiroteio. É uma pequena Tróia sertaneja que se esboça.
 
Passam-se dois, três dias. Chega um emissário da família da moça, que cedeu à realidade e se propõe a levar de volta os dois – que já se casaram, ali mesmo, com padre e testemunhas. E assim se vão em paz os jovens nubentes, rumo ao enfim-sós, por entre renques de homens armados de carabinas.



É uma historieta simples, sem nada de mais, e aborda um tema que não é apenas sertanejo, é nordestino e talvez brasileiro: o casal de namorados que querem viver juntos, enfrentam a resistência das famílias, e acabam fugindo para forçar o casório. Vários amigos meus casaram nesse sistema, e não foi na época em que o conto é ambientado, foi nos anos 1960.
 
Em “Luas de Mel”, o plural indica a importância dos dois casais: os jovens fugidos, e o casal de meia idade da fazenda que os acolhe: o narrador Joaquim Norberto e sua esposa Sa-Maria Andreza. A obrigação de atender um pedido do chefão protetor daquela região, Seo Seotaziano, põe em polvorosa a fazenda que andava na modorra, na rotina, na pisada vagarosa do nada-acontece. Dá uma sacudida na vida deles.
 
De um momento para outro, forma-se a defesa, mobilizam-se os pistoleiros, mensageiros são mandados às pressas para alertar os vizinhos. A fazenda Santa-Cruz-da-Onça começa a se pintar para guerra. Isso acaba elevando não apenas a temperatura bélica, mas a amorosa. Joaquim Norberto rejuvenesce, restaura as antigas forças. E, passo a passo, ele vai mudando a maneira de se referir à esposa.


Mary L. Daniel (em João Guimarães Rosa: Travessia Literária, Ed. José Olympio, 1968, pág. 158) faz a divertida enumeração dos sucessivos tratamentos que Joaquim Norberto dispensa à esposa, saboreando seu nome com lúdica formalidade (as indicações de página correspondem à primeira e à terceira edição):
 
“Sa-Maria Andreza, minha santa e meio passada mulher...” (PE, 106)
“Sa-Maria Andreza, minha correta mulher...” (PE, 107)
“Sa-Maria Andreza, minha mulher...” (PE, 108)
“Sa-Maria Andreza, minha conservada mulher...” (PE
“Sa-Maria Andreza, mulher...”
“Sa-Maria Andreza, minha...”
“Minha Sa-Maria Andreza...” (PE, 109)
“...minha sadia Sa-Maria Andreza – contemplada” (PE, 110)
“... Sa-Maria Andreza, mulher minha”
“Minha Sa-Maria Andreza, mulher...”
“Sa-Maria minha Andreza... (PE, 110-111)
“...Sa-Maria querida Andreza.” (PE, 112)
 
A gente nota assim o reaquecimento gradual das atrações pretéritas. No primeiro exemplo de todos, quando o casal ainda está na prateleira do descanso, incide o termo “meio passada”, que hoje seria considerado altamente pejorativo (lembrando até o chocarreiro “mulher rodada”). Por outro lado, a descrição que o fazendeiro faz de si mesmo é bonachona, mas nem um pouco elogiosa:
 
Por moleza do calor é que eu ficava a observar. Nesse dia, nada vezes nada. De enfastiado e sem-graça, é que eu comia demais. Do almoço, empós, me remitia, em rede, em quarto. Questão de idade, digestões e saúde: fígado. Sa-Maria Andreza, minha santa e meio passada mulher, ia ferver um chá, já, para o meu empacho. (pág. 106)
 
Joaquim Norberto é um líder rural intermediário. Ele afirma: “De pobre não me sujo, de rico não me emporcalho.” É dono de força própria, capaz de arregimentar combatentes leais, mas visivelmente submisso a Seo Seotaziano. Em cujo nome, aliás, a repetição do título (Seo = Seu = Senhor) é um reforço do respeito: o tratamento se incorpora ao nome (“Taziano”, “Taciano”) mas depois precisa ser restaurado diante do prenome modificado. E guarda a mesma função duplicadora, meio afetiva, de quando dizemos “Minha Nossa Senhora”.
 
Já vi vendedor na praia chamando um gringo: “Ô, seu míster!...”
 
E de repente desembarca ali o casal de jovens, apadrinhado e acobertado pelo mandachuva. O episódio é clássico, e a mim me lembra um dos “Mistérios” mais bonitos do “Retábulo de Santa Joana Carolina”, de Osman Lins (em Nove, Novena), em que a matriarca, sozinha, encara e peita um destacamento de jagunços que veio arrastar de volta um casal de jovens fugidos.
 
Proteger o amor alheio é proteger o amor. Joaquim Norberto e Sa-Maria Andreza se redescobrem durante aqueles poucos dias de tensão na fazenda, enquanto esperam de uma hora para outra uma invasão para tentar resgatar a moça.
 
A excitação do perigo:
 
“Homens comendo em pé, o prato na mão; alerta o ouvido. A gente, risonhos de guerra, a qualquer conta.” (pág. 111)
 
O chega-mais da valentia guerreira:
 
“—Ah, minha velha, vamos tocar rabecas...” – gracejei, limpando a parabélum. Sa-Maria Andreza, boa companheira, só disse, abanando os topes: “Aroeira de mato virgem não alisa...” Peguei na mão dela, meio afetuoso. Repensei em todas as minhas armas. Ai, ai, a longe mocidade. (pág. 108)
 
O reaquecimento da cumplicidade física:
 
Eu, feliz, olhei minha Sa-Maria Andreza; fogo de amor, verbigrácia. Mão na mão, eu lhe dizendo – na outra o rifle empunhado-: “Vamos dormir abraçados...”  As coisas que estão para a aurora, são antes à noite confiadas. Bom. Adormecemos.
Amanheci fora de horas, me nascendo dos conchegos. (pág. 111)
 
Outro aspecto interessante do conto é a convivência política entre poderes colaterais – senhores de terras com propriedades adjacentes, ou próximas o bastante para permitir o confronto de tropas rapidamente convocadas. A chegada do casal na fazenda Santa-Cruz-da-Onça leva Joaquim Norberto a se valer das tropas dos vizinhos:
 
Gente minha já galopava, nessa noite e madrugada. Um próprio à Fazenda Congonha, do meu compadre Veríssimo, por três rifles, três homens, emprestados. Pelo seguro. Povo de lá é de brasas. E um à Lagoa-dos-Cavalos, por outros três – para o meu compadre Serejério não se dar de melindrado. Bem. Eu tiro os outros por mim. (pág. 108)
 
Isso traz à mente a interpretação do Grande Sertão: Veredas de Willi Bolle (no livro grandesertão.br, Ed. Duas Cidades / 7Letras, 2004).
 
Ele vê o Riobaldo que conta a história como alguém que fez carreira dentro do sistema jagunço, e de empregado tornou-se patrão, fazendeiro estabelecido (tendo herdado as terras do seu pai biológico). Ele implanta ao seu redor, nas vizinhanças, pequenas propriedades doadas aos seus ex-companheiros de aventuras, homens de inteira confiança. E vive em paz com sua Otacília.  O Joaquim Norberto de “Luas de Mel” é decerto um personagem assim, vivendo o final-feliz possível para um personagem assim:
 
As passageiras consolações: fazer-de-conta-de-amor, o que era o meu cestinho de carregar água. (pág. 113)